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Jundiaqui

 A Casa
24 de abril de 2018

A Casa

Aqueles tijolos, paredes e pisos guardavam tantas memórias, conta Cláudia Bergamasco neste conto

Cláudia Bergamasco

O velho Adamastor abriu a porta da casa e uma lufada de ar gelado invadiu suas narinas. O cheiro de mofo, de casa fechada há anos, era muito forte. As paredes úmidas e descascadas denunciavam que há muito ninguém a habitava. O chão empoeirado e com várias camadas de limbo por todos os cantos clamava por vassouras e consertos.

Adamastor entrou devagarinho. Fechou a porta e seu rosto se iluminou ao ver o lugar em que tinha crescido, embora tenha sentido uma dor forte em seu coração ao ver o estado do seu velho lar. Quanta memória ali se encerrava, quantas risadas, festas, bolos, brincadeiras de criança, pega-pega, bicicletas, balança, os muitos cães e gatos que tiveram. O pai, a mãe, as tias, os primos, os amigos da rua, o aroma das árvores frutíferas. Ele havia sido muito feliz ali. As lembranças fizeram lágrimas escorrerem pelo seu rosto de pele fina, manchada e rugada.

Suas pernas, que um dia vestiam bermudas com suspensórios e saltitavam pelos aposentos da casa, estavam agora fracas e bambas e precisavam de um apoio. A bengala tornara-se sua companheira constante por conta de uma queda besta no banheiro.

Tanto tempo depois, muita discussão em família pelo espólio dos pais, Adamastor decidiu que era hora de rever aquele que foi seu refúgio dourado e particular desde o seu nascimento até a morte de seus pais, vinte anos atrás. Suspirou aquele ar macilento, sem vida, janelas fechadas e fora de prumo. A madeira estava carcomida e a tinta azul colonial que a mãe escolheu para alegrar portas e janelas estava desbotada e descascada. Hoje, tudo era muito úmido e frio naquele lugar.

Uma nesga de sol entrou quando Adamastor abriu uma das janelas rangentes do seu antigo quarto. A luz pintou as paredes suadas de um amarelo amantegado acentuando as manchas de mofo. Partículas de pó se moveram e Adamastor, alérgico, espirrou. Imediatamente lembrou de quando, ainda menino, uma gripe e uma crise de rinite brava que lhe deixou de cama por mais de uma semana. O leito de solteiro era ali, em frente à janela, com a cabeceira de ferro pintado igual ao de hospitais da década de 1940 encostada na parede. Ao lado, uma mesinha com uma vasilha de água, uma vela acesa e sua mãe, dona Irene, sentada na beiradinha do colchão de molas passando a mão em sua cabeça e cantando cantigas que ele agora ouvia perfeitamente.

Aquelas memórias lhe faziam um bem imenso. Lembrava da segurança que sentia ao estar ao lado da mãe cantando. Ao mesmo tempo, tinha calafrios exatamente pelas mesmas lembranças. Temia esquecê-las, temia esquecer a voz da mãe, o seu rosto doce. Já não lembrava direito do rosto do pai. Uma lágrima grossa escorreu pelo seu rosto com semblante triste e olhos fixos onde décadas atrás estava sua cama com cabeceira de ferro azul.

A casa dava sinais de que o vazio que ali se instalara há mais de 20 anos lhe era desprezível. Ninguém mais havia estado ali nesse tempo todo e ela sentia essa ausência estalando seus tijolos, trincando paredes, desgastando aquilo que eram seus ossos – suas estruturas básicas. Se ainda fosse viva, seus pulmões não estariam congestionados por tantas camadas de sujeiras e lembranças. A casa estava em seus últimos suspiros. Logo desabaria, desapareceria daquela rua que fora feliz com o grito das crianças e certamente daria lugar a um arranha-céu. Ela suportou tudo, mas o descaso e a falta de trato a estavam matando.

Os irmãos não chegavam a um consenso sobre a partilha e o tempo a fez perder o valor. Não valia mais nada, praticamente. Só lhe restavam as memórias, os dias ensolarados vividos pela família Rodrigues sob aquele teto. A casa fora testemunha e cúmplice de tudo o que por lá se passou desde que o pai de Adamastor a construiu, em meados dos anos 1940. Fora refúgio de um casal apaixonado. Depois, dos filhos desse casal, dos amigos dos filhos, dos netos e dos amigos dos netos. Guardiã da identidade da família Rodrigues. Mas, agora que estava a um triz da morte, só Adamastor fora visitá-la.

Adamastor ficou na casa por cerca de uma hora, mas era como se tivesse voltado 100 anos no tempo, quando nem tinha nascido ainda. Em cada pedaço de madeira do chão, dos caquinhos vermelhos picados do piso da varanda, lembrava de um acontecimento diferente. Os felizes, os não tanto assim e os tristes. Como no dia em que seu pai lhe deu a notícia da morte de seu avô. Foi no alpendre, debaixo do abacateiro, onde uma balança de madeira bruta fora pendurada por uma corda na árvore e, ao longo do tempo, todas as crianças da família sentiram o vento na cara voando para lá e para cá.

Aquele vento, que lhe pareceu o mesmo que sentia quando criança, lambeu o corpo de Adamastor naquele momento. Ele apertou o suéter surrado de lã marrom e fechou seus braços. Ia chover e a casa lhe falaria onde estavam as inúmeras goteiras.

Era um sentimento complexo. Amava aquela casa, mais ainda as lembranças que nela grudaram para sempre. Precisava fazer alguma coisa. Mas, não tinha dinheiro para comprar a parte dos irmãos, não tinha dinheiro para reformar e não queria perdê-la. Uma porta bateu com o vento e Adamastor entendeu que era hora de partir dali. Deixar a casa no passado e guardar as lembranças na caixinha de sua memória cerebral – que já não andava tão boa assim.

Começou a chover forte e as goteiras apareceram como se fossem as lágrimas da casa, que também sentia profundamente a partida dos donos e seus filhos e netos. Aqueles tijolos, aquelas paredes e pisos de madeira e caquinhos guardavam tantas memórias que a casa ganhou alma. Todas as casas têm alma, pensou Adamastor, num lance de lucidez plena. Cada uma com suas histórias, cada uma com suas famílias, suas felicidades e tragédias. Ele precisava sair dali. Um naco do teto do quarto estava quase a desabar.

Enfiou a chave na porta, fechou o portão baixo de ferro feito em estilo barroco que guardava as roseiras e virou as costas. Parou na calçada sem olhar para trás e chorou.

A casa chorava por dentro. Quando Adamastor entrou no táxi, um teco do teto do seu quarto caiu deixando mais água passar. A casa entrou em prantos. A casa e seus aposentos pranteavam a falta de seus habitantes. Ela morreu, desabou por obra do tempo e, com ela, foram-se junto as memórias da família Rodrigues.

Um pedaço da alma da família Rodrigues morrera naquele instante. Adamastor foi sepultado pouco tempo depois.

Cláudia Bergamasco é escritora

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