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Jundiaqui

 Música, amor e política
5 de setembro de 2019

Música, amor e política

Por Renata Iacovino

Talvez uma das maiores dificuldades ao tentar destrinchar um pouco da obra de Chico Buarque resida na intenção de focar este ou aquele ângulo, já que cada um deles desmembra-se em inúmeros outros.

Um dos aspectos interessantes é quando o autor alia a política ao amor.

Muitas de suas letras unem tais universos, construindo imagens belíssimas e repletas de figuras de linguagem.

Assim fez com “Samba e Amor”, de 1970, uma espécie de declaração de amor conscientemente alienado: “Eu faço samba e amor até mais tarde/E tenho muito sono de manhã (…)”. Mais adiante: “No colo da bem-vinda companheira/No corpo do bendito violão/Eu faço samba e amor a noite inteira/Não tenho a quem prestar satisfação”.

A referência ao corpo da mulher de forma análoga ao instrumento violão resume, de certa forma, o que importa a ele no momento: a música (representada pelo samba e pelo violão) e o amor (identificado pela mulher e igualmente pelo violão, fazendo deste código uma possibilidade de unicidade: mulher/música, ou amor/música ou outras combinações).

Referências como “Escuto a correria da cidade, que arde/E apressa o dia de amanhã” denotam uma contextualização da metrópole urbana e não simplesmente – o que seria mais comum – num cenário idílico.

Ao declarar “não ter a quem prestar satisfação” parecia querer despojar-se de algum comprometimento político inerente à época. Coincidência ou não, é a partir daquele período que o cenário político-cultural torna-se mais conflitante e obscuro, e grande parte de suas composições torna-se verdadeiros hinos de protesto, submetidos, claro, à censura.

E então vieram “Apesar de você”, “Construção”, “Cordão”, “Deus lhe pague” e outras.

Mas voltando ao tema do amor politizado, anos mais tarde, em 1979, compôs “Amando sobre os jornais”, gravada, então, por Maria Bethânia, que emprestou à canção, a pujança que ela pedia.

Muito embora despida de qualquer partidarismo ou ideologia nacionalista, o amor é ali desenhado como uma espécie de elemento orgânico ligado à vida política. As notícias de jornais são trazidas por dois amantes, que desfilam o fazer amoroso em meio às folhas e ao noticiário ali impresso.

Vejamos a primeira estrofe: “Amando noites afora/Fazendo a cama sobre os jornais/Um pouco jogados fora/Um pouco sábios demais/Esparramados no mundo/Molhamos o mundo com delícias/As nossas peles retintas/De notícias”. A metáfora e a literalidade evidenciam-se simultaneamente: a água e o fogo; o incêndio e a enchente (tratados na estrofe seguinte); a notícia e o ato sexual; e o jornal enquanto cobertor e veículo de comunicação.

Há um ambiente de reciprocidade e simbiose entre o ato amoroso e os acontecimentos objetos da matéria jornalística. A própria rima buscada por Chico traz esta união: delícias/notícias. Este trecho, inclusive, é um dos mais poéticos da canção. Introjetemos a imagem: “As nossas peles retintas/De notícias”. Na segunda estrofe os amantes continuam a viagem: “Amando noites a fio/Tramando coisas sobre os jornais/Fazendo entornar um rio/E arder os canaviais/Das páginas flageladas/Sorrimos mãos dadas e inocentes/Lavamos os nossos sexos/Nas enchentes”. A antítese presente nos termos “flageladas” e “inocentes” mistura, uma vez mais, o ato praticado à realidade constante no noticiário, o que se repete nos dois últimos versos desta mesma parte.

Este cenário, que mescla as cenas da cidade com uma história amorosa, foi objeto de abordagem em outras canções de Chico, como “As Vitrines” (1981) e “Pelas Tabelas” (1984). Sobre elas há tanto que se falar, ficando, portanto, para outra ocasião um comentário mais específico.

E embora as letras de Chico Buarque possam ser lidas como poesias e aqui não há possibilidade de ouvi-las, fica a sugestão para que completemos estas breves observações com a audição das músicas mencionadas. A palavra cantada, a letra e a melodia resultam um único todo e separá-lo prejudica a compreensão plena, uma vez que a música é produtora de significado.

Mas como a palavra leva à música e a música à palavra, sempre espero com minhas palavras levar o leitor até as músicas.

Renata Iacovino é cantora, escritora, poetisa, membro da Academia Jundiaiense de Letras e do Grêmio Cultural Prof. Pedro Fávaro

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