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Jundiaqui

 Bolacha Maria ou “o corpo de Cristo”
11 de abril de 2019

Bolacha Maria ou “o corpo de Cristo”

Por Nelson Manzatto

Pequeno, não mais do que quatro anos de idade e, não sei porque, sério! Apesar de criança, muito criança, já tinha ideia do que ia ser no futuro. E era no seu tempo de criança que, ao invés de brincar como outros de sua idade, preferia reunir os irmãos mais velhos para fazer algo que gostava muito: rezar a missa!

Reunia dentro do quarto eu, Ana Maria e Osmar, já que Ademir trabalhava e Bertinho ainda não tinha nascido, e lá ia Toninho, com um lençol branco enrolado no corpo e amarrado na cintura com a ajuda de nossa mãe, fazer sua “celebração”.

Compenetrado, entrava para celebrar, segurando nas mãos um copo com água e groselha, para representar o vinho e, em cima de um pires, que substituía a patena, uma bolacha Maria que, mais tarde, se “transformaria” no Corpo de Cristo.

A “missa” começava com as orações do folheto que ele “fazia de conta” que lia e nós respondíamos o “e contigo também” ou “Glória a vós, Senhor”, sempre que o “padre” solicitava. A homilia era rápida, cinco palavras, no máximo. Nos esforçávamos para não rir, pois Toninho mantinha seu ar sério!

Na hora da “Consagração” fazia a gente ajoelhar, erguia a bolacha que mais se parecia com a hóstia que o padre mostrava na missa, fazia as orações em voz baixa e pronto: agora mostrava o “corpo de Cristo”.

A inocência de nossos corações nos permitia, em seguida, comer um pedaço da bolacha, torradinha, e bebericar um gole da água com groselha que, agora, se transformara “em sangue de Cristo”.

Quebrava a bolacha, mostrava para nós e dizia “o corpo de Cristo”; com seriedade, respondíamos “amém!”

Claro que esta inocência acabaria virando, hoje, motivo de riso, mas vivo olhando aqueles olhos serenos, aquela barba agora branca, que ele permitiu que o tempo assim a deixasse, e percebo como Deus faz as coisas tão certas.

É que tinha que ser ele, com sua voz pausada, a celebrar, mais tarde, a Missa de Ação de Graças pelos 40 anos de casamento de dona Angelina e seu Alcindo. E a cerimônia ocorreu na igreja de Vila Arens. Igreja onde ele foi batizado, fez a Primeira Comunhão, foi crismado e acompanhou, passo a passo, os caminhos do padre Hugo.

As ações que realizamos em nossa infância, nem sempre resistem ao tempo: desaparecem da mente, se perdem nas atividades do dia-a-dia, se esquecem no trabalho ou em qualquer outro ato de nossas vidas. Mas para Toninho isso nunca desapareceu: criou dentro de si uma necessidade de transformar sua brincadeira de infância preferida em realidade, e transformar o meigo e doce olhar de dona Angelina, numa alegria sem tamanho quando da celebração de sua primeira missa.

Foi acompanhando os passos de seus irmãos mais velhos que entrou na “Cruzada Eucarística Infantil”, na Vila Arens, e foi se apaixonando pelo Cristo, pelas pessoas, pela vida. E, sendo uma espécie de sombra de padre Hugo, decidiu dedicar sua vida a Deus.

Não era apenas um dia por mês que seu trabalho aparecia. Toda primeira sexta-feira do mês saía de casa por volta das 6 horas da manhã e só voltava na hora do almoço. E isso tinha sentido: é que este dia era dedicado ao Sagrado Coração de Jesus e padre Hugo levava a comunhão para um número muito grande de doentes. Chegava esfomeado, morrendo de sede, mas sempre feliz.

Porém aos domingos é que a dedicação também era grande: depois da missa das crianças, que começava às 7h30, e da reunião da “Cruzadinha” que ia até 9h30, Toninho fazia questão de ver o que padre Hugo tinha programado para aquele dia. Às vezes, Toninho chegava para almoçar, depois do meio-dia, mas nunca seu Alcindo bronqueou, apesar de gostar de ver todos na mesa, para almoçar, no horário de costume!

E foi com esta dedicação que, numa tarde, chegou em casa acompanhado pelo dono da oficina mecânica onde trabalhava, aos 16 anos, para dizer que aquela não era a vida que queria. Que não se sentia bem trabalhando atrás de uma escrivaninha, sentindo o cheiro da graxa. Mas que aquela bolacha Maria representava para ele muito mais do que um trabalho que renderia dinheiro e sustento para sua família.

E hoje, quando o vejo no altar, com aquelas roupas todas, coçando a barba desarrumada, é que procuro lá no alto, num cantinho do céu, os olhos azuis de dona Angelina brilhando de alegria e seus lábios doces “soprando” frases que ele transmite aos fiéis…

(Homenagem a meu irmão Antonio Manzatto, hoje cônego da Arquidiocese de São Paulo)

Nelson Manzatto é jornalista e escritor

 

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