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Jundiaqui

 A casa do Centro
21 de setembro de 2019

A casa do Centro

Naquela penumbra que ali reinava, um cheiro de mofo, o tempo era uma ilusão, passava rápido e a felicidade era fácil, conta Cláudia Bergamasco

Cláudia Bergamasco

Houve um tempo em que o tempo passava mais devagar e a diversão era como o ar que respirávamos. Diversão, curiosidade, criatividade, descobertas… A vida era simples, o sorriso e a gargalhada eram fáceis, não havia perseguições de nenhuma espécie.

Morávamos numa casa velha no centro velho da cidade, em frente ao morrão, ao lado da hoje Pinacoteca, em frente ao Polytheama e ao prédio onde funcionava a Câmara dos vereadores. Era um lugar mágico. Quando chovia, minha mãe tinha que espalhar baldes pela casa por causa das goteiras que brotavam do teto de placas de duratex pintado de cor clara, algumas como se fossem torneiras abertas. O duratex inchava e invariavelmente ia ao chão. A casa podia ser velha, mas éramos felizes para dedeu.

Meus amigos moravam perto e nos reuníamos todos os dias, quase sempre na minha casa. Éramos crianças, brincávamos de teatrinho, de roda no quintal, de balança, comíamos manga que caía em casa do pé plantado no terreno do vizinho. A copa era tão grande que invadia o nosso quintal. Depois, mostrávamos os dentes amarelos um para o outro cheio de fiapos. Tínhamos fome do futuro.

Essa casa tinha uma construção pitoresca. Ao fim de uma longa e estreita escada – que terminava em um quintal maravilhoso e imenso – havia, ao lado esquerdo, uma porta dupla que se abria para um enorme salão. Tinha um pé direito imenso, um tanque minúsculo, a máquina de lavar, a máquina de costura da minha mãe e um mesão de ferro e madeira maciça que meu pai trouxe da fábrica em que trabalhava. Pintamos de branco e laranja. Amávamos aquela mesa gigante, forte e poderosa.

No canto oposto, havia uma abertura onde deveria ter uma porta, mas não tinha. Dava para outros cômodos, cheio de caixas, garrafas, poeiras e sabe-se mais o quê. Eram como matrioskas, as bonecas russas que se encaixam uma na outra, só que, no porão desta casa, esses cômodos eram caixas ou casinhas – talvez o antigo inquilino fizesse uma adega ali, ou um depósito de coisas velhas que ele não levou embora. Cada casinha ia ficando menor à medida que se avançava até que era preciso rastejar para chegar à casinha no nível da rua. Claro que nunca chegamos até lá. Eu e meus amigos tínhamos paúra destes lugares. Conseguimos ir até o segundo cômodo. Era como entrar na tela de cinema de um filme de terror. Apostávamos quem iria até o terceiro. Ninguém. Ríamos de medo, mas no fundo era puro divertimento.

Havia muitas prateleiras nesse porão. Muitas caixas, garrafas, tudo muito empoeirado e cheio de teias de aranha. Dava muito medo. Mas havia sonho também. Aquela boneca quebrada que tanto brinquei virou minha cúmplice e acompanhou meus desatinos de garota rebelde em tempos de gostar de filmes de terror – lembro de uma passagem que deixou minha mãe de cabelos em pé. Era o lançamento do filme “Exorcista” e eu, rebelde, peguei minha boneca loira e descabelada, enfiei um vestido de cetim verde de mangas compridas da irmã de um amigo, a preguei na parede de cabeça para baixo, enfiei uma faca no coração e passei batom vermelho na cara, no vestido e na faca. Apaguei a luz, fechei a porta e subi. A luz era muito baixa e minha mãe, nessa noite, desceu para recolher a roupa. Deu com a boneca. Tomou um susto e me deu uma bronca que eu lembro como se fosse hoje. Mas, ainda assim, rimos até hoje do que fiz.

Não passava de um simples porão, muito grande, teto muito alto, como disse, dois ou três gastos degraus de pedra para entrar ali. Não tinha nada de especial, mas para mim, era o maior de todos os milagres. Naquela penumbra que ali reinava, um cheiro de mofo, o tempo era uma ilusão, passava rápido e deliciosamente. Brincadeiras mil… era o tempo secreto, o tempo da inocência que vem e vai sem a gente se dar conta. Tempo dos mais belos sonhos enredados numa teia de felicidade fácil, colorida, livre, sedutoramente livre e cheia de tramas de viver sem compromissos senão com a própria felicidade que não sabíamos que era felicidade.

Só mais velhos, tempos depois, vamos saber o que vivemos, os sentimentos, a pureza dos nossos desejos infantes. Mas, só temos os rumores do que vivemos. O todo se desfaz como uma nuvem de algodão doce que, lembramos, tingiram nossos lábios de açúcar colorido e prazer. Às vezes recuamos diante de tais lembranças, nos expressamos nas entrelinhas. Só os escolhidos entenderão essa fase maravilhosa da vida. E talvez se calem. Ou se lembrem com tanto carinho que, como eu, se sintam impulsionador a escrever sobre ela.

Toda criança tem um potencial imenso pela frente. O mundo está a seus pés. Podíamos tudo. A alma inflama, disseca, cria asas, ninguém prende ou ousa perturbar a liberdade que vivíamos e a que estava por vir. Mas, nunca sabemos se esse potencial irá ou não se realizar. Ficam as lembranças. Já adultos, precisamos vencer a banalidade do cotidiano e se soltar para entrar nesse mundo maravilhoso que vivemos quando criança. Aventurar-se rumo às boas portas do passado, dissolver suas durezas, seus muros auto erguidos, descobrir-se, sem sutilidades, sem dedos, sem amarras. Perder os rumos e entrar de cabeça na nossa própria história. Sempre há uma passagem incrível, que você guarda no coração como um amuleto, como algo muito querido, só seu, secreto, iluminado.

Reencontrar a alegria é o grande testemunho de como foi importante o que no passado nos iluminava, e nos dá força para, agora, sobrevivermos inteiros ainda que machucados. Alguns muito mais machucados que outros, mas mesmo assim, avante e além.

Que saudades do porão dessa casa velha (que já não existe mais), que saudades desse passado que não volta nunca mais, do entorpecimento das emoções, dos labirintos emocionais cheio de ternuras e cor que invadiam meus espaços interiores tão frágeis e, ao mesmo tempo, tão fortes e decididos. Meus amigos eram cúmplices desses sentimentos porque éramos todos crianças, todos com os mesmos potenciais, os mesmos medos, as mesmas alegrias.

Não importa se a história é minha, minha e dos meus amigos de infância, ou apenas se parece com a história de todos nós. Viver é uma aventura sem rede.

Cláudia Bergamasco é escritora

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