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Jundiaqui

 Celebração do prazer
15 de dezembro de 2018

Celebração do prazer

Por Cláudia Bergamasco

A casa cheirava a especiarias quando Theodoro entrou. Beatrice estava na cozinha, lugar que mais gostava e, portanto, onde mais tempo ficava naquela casa que pouco havia mudado desde os tempos em que sua avó materna era moça. Uma das panelas sobre o fogão, feita de cobre grosso e que fora justamente da avó, fervia um caldo que, no final, resultaria uma espécie de gelatina não comestível. Era para ser usada na pele. Na receita, gengibre, noz-moscada, badiana (conhecido como anis-estrelado), cravo, canela, alguns tipos raros de pimentas entre outros ingredientes secretos. Quando bem apurado, depois de horas fervendo em fogo baixo, Beatrice colocaria óleos essenciais de laranja e verbena, uma fruta que apreciava muito e uma flor que, para ela, cheirava a anjos.

Theodoro a enlaçou pela cintura, de costas, e beijou seu pescoço. A namorada virou e deu-lhe um beijo ardente, desejado há dias, necessário, e que faria aquele caldo viscoso e extremamente aromático ficar completo, porque a receita centenária, herdada também da avó, só faria sentido se fosse usada em seu homem, para hidratar sua pele e estimular sua virilidade.

– Estou fazendo umas coisinhas para nós, disse Beatrice com feições que revelavam uma mulher em plena orgia culinária.

– O cheiro está incrível, retrucou Theodoro, sentando à mesa e a observando.

Enquanto ela coava o caldo e esperava esfriar para ficar espesso, tratava das outras panelas. Beatrice era esguia e alta, mas não fazia dietas. Achava as modas de restringir isso e aquilo bobagens para tolas. Tinha prazer em comer bem e servir bem. Pratos deliciosos saiam de seu forno e de seu fogão, que, vez por outra, exalavam aromas de outras eras, preparados por mulheres da família para outros homens. Beatrice tinha crescido vendo as mulheres da casa na cozinha, em volta do fogão falando de receitas e dos deleites que tais e tais ingredientes provocavam, as receitas que saciavam não só o paladar e enchiam o estômago de energias necessárias, mas dos regalos carnais, aqueles que vinham antes, durante ou depois da execução desse ou daquele prato.

A linhagem feminina da família de Beatrice primava pela sabedoria da gastronomia e seus efeitos afrodisíacos e curativos. Na sua cozinha, ela era uma boticária. Colecionava potes e mais potes com ervas, especiarias e os mais diversos ingredientes, alguns bem raros e até desconhecidos da maioria de nós. Em frente ao fogão e mexendo as suas panelas, Beatrice virava uma bruxa que tanto fazia alimentar, dar prazer, curar, ou tudo isso junto. Essa era uma das suas maiores virtudes e também vaidades. A bruxaria dos repastos proporcionava ótimas oportunidades de fazer amor.
Theodoro adorava. Fora fisgado pelo estômago e pelo jeito sutil e pitoresco do comportamento de Beatrice. Era menina, mulher, uma pícara noviça envolta em pasta de mel e amêndoas moídas pronta para ser lambida, degustada. Ele sentia mais que desejo por Beatrice. Era amor, carinho, um borboleteio estomacal e também uma vontade louca de desvirginar todos os dias aquilo que para ele parecia uma virtude puritana, uma mescla de todos os sentidos humanos.

Beatrice lhe presenteava com aromas, texturas (incluindo, claro, sua pele sedosa), formas, sabores, músicas que lhe traziam recordações sempre associadas aos sentidos, à visão maravilhosa das comidas e da própria Beatrice. E, claro, do paladar incomum e sempre singular de suas criações culinárias, que ele também associava ao paladar da pele daquela mulher que ele amava e desfrutava caudalosamente.

Não havia todo dia no dia a dia de Theodoro e Beatrice. Tudo era para sempre ao mesmo tempo em que era efêmero, volátil, fugaz e tudo ficava grudado na memória dos dois. Uma sinestesia, ou seja, uma fusão de impressões sensoriais diferentes. Tudo entre os dois era intenso. As colheradas daqueles sucos que brotavam das carnes de ambos e daquelas que saiam do forno e do fogão os assaltavam com uma intensidade orgástica e sumiam sem deixar traços, para depois regressarem com renovado ardor.

Com Beatrice, Theodoro não sabia o que era melancolia. Seu espírito era sempre jovem, independente da idade que tinha – estava na casa dos 30.
Beatrice e o cheiro penetrante daquela casa, os cozidos e coloridos que saiam das panelas que borbulhavam naquele fogão eram indissociáveis. Theodoro endoidecia, perdia a razão. Adorava ver a namorada fazer pão. Amassar aquela massa lívida com seus braços que deixavam à mostra músculos em movimento e o requebrado das suas ancas. Era excitante, um desvario.

Naquela cozinha imensa e cheia de cheiros, potes e instrumentos para cocção, havia também uma mesa de grossa madeira, pesada e marcada por tantos ingredientes, batidas e massas amassadas por muitas outras mulheres antes de Beatrice. Em meio a farinha espalhada, eles faziam amor.

Theodoro a pegava sempre pela cintura, beijava sua nuca enquanto suas mãos acariciavam suas costas, seu pescoço, sua bunda, sorvia seus sumos, penetrava suas entranhas. O gozo de ambos vinha quase sempre no tempo que leva para uma panela de pressão bem grande apitar e soltar seus suores.
Depois, um vinho tinto seco de ótimas cepas acompanhava o pão recém-assado e ambos continuavam a desfrutar dos prazeres do corpo – o alimento, a bebida e o amor que, juntos, esquentavam e aconchegavam a alma. Degustavam o sabor da boca de cada um a cada gole, a cada bocada daquele pão. O bom humor imperava e os limites entre o amor e o apetite – da carne e pelas carnes – eram difusos. Era uma memória sensual e sensorial que os dois experimentavam. Um exercício culinário e erótico ao mesmo tempo.

Beatrice era ruiva, cabelos longos, fortes, brilhantes e cacheados como os de uma criança. Pele rosada, às vezes num tom de framboesa pálido, outras cor de leite com pintinhas feito um sorvete de flocos, que no lugar do chocolate tinham um tom de frutas vermelhas espalhadas por todo o corpo, até nas mãos e partes íntimas. Tons ora dourados ora rosados como certas infusões de chá. Naquele dia, à noite, convidou Theodoro para um banho de banheira de um jeito guloso. Esfregou suas costas com a tal gelatina de especiarias feita por ela, passou em seus cabelos pretos também encaracolados, em suas pernas, seu membro intumescido e ambos se perderam em suas peles, seus pelos, cabelos, suas carnes tenras e rosadas.

Que truques, que magias, que jogos aquela coisa meio gosmenta, meio ardida e assim mesmo macia e de aromas excitantes continha para que eles, os amantes, não conseguissem ficar longe um do outro? Eles revelavam pensamentos deliciosos, impulsos febris, velozes, arroubos de imaginação perversa e conduta sigilosa. Só eles, e as comidas de Beatrice, devoravam aqueles momentos fantásticos que passavam juntos.

A secreta tepidez dos efeitos do vinho, as cócegas das especiarias na pele e no sangue, que corria quente e rápido naqueles corpos jovens, antecipavam carícias e atrasavam o gozo até onde conseguiam e quantas vezes tivessem vontade.

Anestesiados pela diversão necessária, Theodoro e Beatrice foram para a cama dormir, dar outro tipo de alimento ao corpo, o sono, para depois, em algum tempo, começarem tudo de novo e de novo e de novo, ao longo da vida inteira. Uma celebração indispensável e eterna da vida e em vida.

Nota da autora: O quadro que abre este texto é de F. Scott Hess e se chama “Dear Katie”. Cascas de ostras vazias, cascas de nozes e uma garrafa de champanhe deitada relatam bem o prazer do consumo. Diz Hess: “Os beijos não duram: os cozinhados, sim!” Para pensar.

Cláudia Bergamasco é escritora

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