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Jundiaqui

 Um grito de socorro
3 de novembro de 2018

Um grito de socorro

Por Cláudia Bergamasco

Dolores se sentia plena e feliz nos seus 50 anos. Estava tão linda quanto jamais esteve em toda sua vida. Brilhante, coração leve, equilibrada. Depois de anos, ela finalmente havia conseguido dormir o sono dos justos e voltar a sorrir à toa, como uma criança sapeca.

Dormiu por meses como um bebê tranquilo. Os inúmeros incômodos da menopausa haviam chegado ao fim, assim como seu curtíssimo e tumultuadíssimo casamento. Bem, não foi exatamente um casamento, mas um acordo entre ela e ela mesma de que não morreria sozinha, então ela buscou alguém que pudesse ser seu companheiro, seu amigo. Só Deus sabe o quanto estava enganada.

Poucos anos depois, no entanto, as coisas mudaram. Dolores, que tinha tido o azar de ter esse nome de batismo, que encerra um quê de dor, entrou num mundo entre o cinza claro e o negro, às vezes branco e feliz, mas a maior parte do tempo fechado, nebuloso, sem perspectivas e muita carência. Ela realmente havia alcançado um equilíbrio entre a luz e a sombra, mas desapareceu como um sopro. Teve reencontros e muitas decepções. Tão grandes que lhe passaram a perna e ela caiu. De novo.

Claro que não foi a primeira vez que caiu. Foram muitos e muitos tombos e tombaços, rasteiras de golaço. Numa dessas, teve um problema hormonal e foi parar no hospital, onde voltou quatro vezes para cirurgias. Em seguida, fez terapia e foi em busca de reencontrar a fé. Conseguiu se reerguer sabe-se lá como, a conta gotas. Demorou mais de 20 anos, mas conseguiu.

Agora as coisas estavam difíceis novamente. Talvez fossem os sessenta chegando, talvez a solidão, talvez a imensa falta de amar, de cuidar, de receber gentilezas e carinhos das mais variadas formas. Talvez por ter amado demais, confiado demais, sido ingênua demais ou por tudo isso e muito mais, tudo junto e misturado.

O fato é que levantar da cama todas as manhãs e secar as lágrimas que escorrem grossas sem a sua permissão tornou-se uma batalha hora a hora. Espanhola do sul daquele país, de sobrenome Gimenez, Dolores nunca precisou de remédios para ansiedade e muito menos para dormir – e olha que ela já fora para o Inferno uma vez e lá ficou por tempo além da conta. Foi um período muito ruim em que o fundo do poço parecia nunca chegar. Todo dia descia mais um degrau. Aos poucos, mais de duas décadas depois, como já disse, Dolores conseguiu se ver como gente de novo.

Hoje, se vê como uma pessoa que nada acrescenta ao mundo, nem ao dela próprio, nem ao seu, nem ao de ninguém. Vive uma tristeza sem fim, uma nebulosidade cheia de cumulonimbus anunciando tempestades internas, somatizações, fraquezas, falta de gosto (qualquer um) pela vida que Deus lhe deu.

Os problemas se acumulam e Dolores não enxerga saídas. Engraçado: tão estudada, tão vivida, tão vívida no seu trabalho como empresária do ramo de T.I, orgulhosa de tudo o que alcançou sempre a duras penas e agora vê tudo tão volátil, sem cabeça para pensar em algo que lhe tire dessa areia movediça bem safada que a tragou de jeito.

Hoje é véspera do dia de Nossa Senhora, mãe de Deus Pai Poderoso. Dolores não era, mas ficou bem mais crente na existência de forças divinas, forças bem maiores que a nossa e que nunca alguém conseguiu lhe dar explicações realmente plausíveis sobre ela. Acendeu uma vela e orou. É simplesmente fé. Tem andado fraquinha, mas Dolores não anda sem e bota confiança na sua para sair desse buraco negro que nem Stephen Hawking previu que um ser humano pudesse entrar. É tida como uma pessoa de personalidade forte, difícil, explosiva, teimosa, mal humorada, independente demais. Mentira. Ela é forte, sim, independente, sim, mas também doce, coração de manteiga, e, às vezes, como agora, frágil como uma casca de ovo. Fidelidade, lealdade, amizade, caráter são as coisas que mais preza nas pessoas. Detesta mentira, desprezo e injustiça.

Quem a vê ou sabe onde e como mora não imagina as dificuldades que passa. Desde as mais prosaicas, como trocar uma lâmpada do modelo moderno, que não lembra se é de pino, de fio ou de reator (muita coisa mudou ao longo dos últimos 20 anos, desde que ela se mudou para o ela diz ser sua moradia-santuário), até a sua atual desnutrida conta bancária, passando por questões técnicas, como segurança da casa, telefônica e de internet. Sim, Dolores está sendo “estalqueada”. E seu telefone, seu celular e seu tablet estão grampeados. O motivo do grampo e a pessoa que está fazendo isso ela, talvez jamais saiba.

Ela teme ser roubada, assaltada, estuprada, sequestrada. Teme que derrubem o muro ou o portão da casa, que matem seu cachorro, que explodam sua casa e sua vida.

De um ou dois meses para cá, porém, deixou de se preocupar demasiado com esse assunto em favor da sua sanidade. Dolores já tentou quase tudo e o tal grampo, ou algo que o valha, não desaparece. O que você quer saber de mim que já não sabe?, pergunta. Quem és tu?, questiona. Porque e para que me “estalquear”?

A invasão de privacidade é o que mais lhe incomoda. Bem, pensa ela, a pessoa deve ter uma explicação plausível. Estou disponível para ouvir se você tiver coragem de me encarar, de ficar olho no olho comigo, diz a ela mesma se olhando no grande espelho de seu banheiro.

Mas, se fosse só (só?) isso estaria quase tudo bem. Questões familiares, questões de saúde (a dela também), a questão financeira, a falta de trabalho – escolheu duas profissões que ama, mas que não rendem dinheiro, especialmente na cidade em que decidiu morar: tecnologia da informação e doceira. Ama as duas. No entanto, dinheiro que é bom, necas. A tal cidade é esplêndida para se morar, muito ruim para se divertir e comer e péssima para empregos como os das suas especialidades. Morar em outro lugar, outro país? Não dá mais. Seu dinheiro está enterrado em tijolo e cimento e vender a casa nessa economia desamigável atual não é saída, é suicídio.

Amigos? Poucos, bem poucos, mas de qualidade superior. Por acaso, são homens (sempre se deu melhor com amigos homens do que com mulheres). E são de extrema urgência neste momento delicado. Mas ela sabe que as pessoas não estão ao seu dispor na hora e no dia em que mais precisa. É necessário respeitar suas vidas, afazeres e responsabilidades, mesmo nos momentos mais desesperadores para Dolores. Os amigos de verdade lhe dão as mãos, emprestam seus ouvidos. E o que mais lhe podem dar?

A cada dia perde um pouco do viço, da vontade de viver. Aquele potencial todo que lhe fazia acordar cedo e ir para a vida estudar e trabalhar fez água. Sua força virou pó. Então, fazer o quê? Como desatar esses nós que se tornaram um emaranhado tão grande que ela não consegue mais desfazer? Se fosse um novelo de lã, teria que comprar outro. Mas a vida não é um simples novelo de lã colorido. Tem lá seus fios desencapados, mas, neste momento, Dolores não vê como trocá-los.

O grito de socorro está agora explícito. Escrito. Publicado.

Alguém?

Claudia Bergamasco é escritora

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