LOADING...

Jundiaqui

 O escritor
30 de agosto de 2021

O escritor

O homem acordou com uma mulher de sutiã de renda vermelha na cama e uma história na cabeça

Cláudia Bergamasco

Eu sou um escritor. Gosto das palavras, de descobri-las, defini-las, me ver nelas, compor meus personagens com elas. Aprendi cedo que palavras, especialmente as impressas, têm um poder incrível. Porém, acho que todo escritor tem um lado obscuro, desagradável, desconfortável, depressivo, obscuro, ignorante, ansioso, triste.

Eu tenho tudo isso, admito. Gosto de bares baratos, de bebidas baratas, de vagar pelas ruas de madrugada, de arrumar mulher barata. Também gosto do sabor da depressão. Quanto mais me sinto depressivo melhor escrevo. O doutor recomendou que eu tomasse um ou mais medicamento para eu me confortar, mas dei de ombros. Peguei a receita, amassei e joguei na lata do lixo do prédio.

Dia desses acordei com uma ressaca monstro e uma história na cabeça. Havia uma mulher desconhecida para mim com sutiã de renda vermelha dormindo na minha cama. Fui para o banheiro rápido e vomitei as tripas. Mandei a mulher embora e fui para o computador. Eu cheirava azedo. Dei-me conta que não tomava banho há uns três dias e também não tinha comido nada. Meu estômago roncava. Foda-se. Quero escrever essa história que marreta na minha cabeça como um porrete e está está fresca.

Escrevi um pedaço, mas não consegui terminar. Percebi que não estava pronta. Não tinha “punch”, faltava vigor. O começo estava ok, acho. Mas, não tinha um bom recheio e o fim estava pífio. Eu tinha que burilar aquilo.

Era domingo. Saí a pé da minha quitinete alugada num bairro da periferia da cidade para tomar um café na padoca, não muito longe dali. Mais para desanuviar, para abrir minha cabeça, pensar melhor na história, do que para comer. Ainda sentia enjoo. Ou azia, não sei. O sol da manhã queimou meus olhos, apesar dos meus grossos óculos de grau; tortos porque a haste está quebrada e não tenho dinheiro para consertar. No fundo, nem quero consertar. Acho que a haste quebrada me dá um ar de escritor profissional, rebelde, profundo, reputado.

Cobri a cabeça e parte da minha cara com o capuz do moletom surrado e puído que vesti. Não deu muito certo. O sol continuava a açoitar a minha cara, mas segui em frente. Meu estômago ronca tanto quanto a maldita queimação nos miolos no meio do meu corpo. E minha cabeça lateja como se sinos de torres de igreja badalassem dentro dela. Não lembro se almocei ontem. Só sei que bebi. Bebi muito. Vodca, uísque, cerveja, tequila, cachaça vagabunda, tudo pago por uma mulher. Aquela que estava de sutiã de renda vermelha na minha cama hoje.

No caminho da padaria tem um bar, desses que vendem café de bule e ovo colorido. Parei no balcão de pedra engordurada, pedi um maço de cigarros e um café. O café veio frio e melado, coisa que detesto. Empurrei a xícara de lado, pedi um trago e um bolinho de carne. Vi um gato preto e branco encolhido na canto de uma das paredes, todas enegrecidas pela sujeira e pelo tempo. O dono tinha barba comprida e seus cabelos ralos eram ensebados. Talvez porque fritava coxinhas quando veio me atender com um humor de quem acabara de brigar com a mulher. Tinha um guardanapo grande e encardido pendurado em um de seus ombros. Paguei com nojo e saí.

Continuei andando, mas o sol escaldante me fez querer voltar para casa. Nunca fui dado a sol. Dei meia volta e fui direto para o meu laptop, que sempre dá pau e a internet entra com dificuldade porque é velho e o lugar onde moro hoje nem sempre pega Wi-Fi. Comprei de segunda mão. O bicho estava bom, só precisava de um tapa, que eu mesma dei. É na frente dele que estou agora. Mas a história não vem. Travou. Vi que ainda é dia e eu não funciono de dia. Para mim, tudo acontece à noite. A madrugada me é sempre inspiradora. Quando a maioria ordinária dorme impunemente eu crio.

O sono veio e eu vou dormir um pouco. O bolinho de carne fala comigo agora e só piora a dor de barriga, a azia, a queimação ou tudo isso junto em meu estômago.

Eu sinto um vínculo com a história, mas sei que é preciso me afastar para fazê-la ficar boa. Só que o atraso vai ser muito grande se eu continuar com isso. Meu editor vai me esculhambar, vou ouvir um monte, mas afastar-me da história, ler “de cima”, é uma necessidade imperiosa.

Ao escrever, procuro me espelhar os escritores que admiro e li inúmeras vezes. García Marques, Pessoa, Dostoievski, Tomas Mannn, Jorge Luis Borges, Vargas Llhosa, Saramago. A construção dos personagens, a narrativa desses caras são fantásticas. Os machadianos também me atraem, são a base de todo escritor nacional, mas confesso que já não consigo ler um livro de Machado de Assis. Na verdade, acho que essa intimidade que eu tenho com eles todos me trava a vida e as minhas histórias. Quero sempre dar o melhor de mim, escrever o que vai nas minhas profundezas com a mesma verve desses caras e é aí que me dou conta que vou me ferrar. Porque não sou eles, sou eu, e nunca escreverei como eles.

Isso me frustra e sei que também impede, ou me dá pruridos, que eu desenvolva a minha história, que eu dê vida a ela do meu jeito. Ela se passa nos anos 1940, em Chicago, quando gângsters matavam apenas por causa de um olhar de soslaio. O chefão estava atrás de um homem que lhe devia dinheiro proveniente de tráfico de drogas e bebidas. É uma história policial, cheia de ação, sangue, traição, mentiras, vigarismo, dinheiro, joias, mulheres. Muitas mulheres. Um western classicão com a minha bossa.

Acordei e o estilhaço de vidro no meu joelho reclamou. Toda vez que o tempo muda ele grita. Eu ganhei esse estilhaço em um tombo besta que tomei quando tentei pular um muro de uns dois metros de altura. Coisa de moleque. Quando caí do outro lado, meu corpo afundou no meu próprio corpo e, bem na direção do meu joelho, tinha uma garrafa quebrada. É lá fui eu para o hospital com cacos enfiados na carne e nos ossos. Nunca mais andei normalmente. Ando claudicante. Minha mãe ficou puta, mas eu era moleque. Tenho 42 anos e o acidente ainda se anuncia com dores lancinantes trinta anos depois.

Você pode achar que minha história é como qualquer outra, que já viu a mesma coisa em zil filmes na TV, em livros B e até em HQ. Mas, tem um diferencial: o chefão tem medo de armas. Não mata nunca. Sempre delega essa tarefa. Acha que, além de não sujar suas mãos, ficará bem com Deus. Só que não tenho a porra do fim da história. Não sei se seria melhor ele ser assassinado por um dos seus, por uma gangue rival, ou se seria melhor que ele morresse de doença ou velhice. O canalha nem mulher tem. É mafioso e cafetão a vida, mas se borra de medos de mil coisas que só uma boa terapia poderia explicar. Também nunca conseguiu o amor verdadeiro de uma mulher, só por interesse. Ele chora escondido por isso.

Enquanto não acho um fim decente para minha história fui beber na fonte dos poetas. Abri um livro de Pessoa, percorri as páginas sem muito interesse. Joguei para o lado e abri outro, de Pedro Navas. O cara era porreta, mas cada uma de suas palavras pesa uma tonelada, o que aumenta minha dor de cabeça e minha angústia.

Afundei na bergère herdada da minha avó (ela crochetava sentada nessa poltrona), acendi um cigarro e traguei bem fundo. Demorei alguns segundos para soltar a fumaça. Nem gosto de fumar, mas eu preciso de uma bengala neste momento. Sinto o tempo passar e gosto de escrever uma história impactante que se esvai junto com o cigarro. Adormeci de novo.

Já é segunda-feira quando acordei. Olhei no relógio de ponteiros em cima da mesa e ele marca 6h45. Merda. Estou atrasado. Tenho que dar aula. Sou professor de história numa escola pública de ensino fundamental em Francisco Morato e é isso que me dá o sustento. O lado escritor ainda não vingou a ponto de eu viver de livros – tenho para mim que, no fundo, jamais vai vingar.

Escovo mal e mal os dentes e saio correndo. Lembro que não tomei banho ainda. Ah, agora não dá mais tempo. Corro para pegar o ônibus e, depois, o trem. A escola fica perto da estação. Suado, entro na classe e dou minha aula no piloto automático. Uma aluninha me perguntou porque eu estava molhado e fedido. Olhei para ela sem graça, sem resposta e respondi que às vezes os homens suam excessivamente e têm cheiros específicos. Outro aluno me fita e eu devolvo o olhar. Inserir uma personagem criança na história que estou escrevendo até que não seria má ideia, pensei. O moleque, de uns sete anos, continua me fitando intrigado. Fico incomodado. Ele me pergunta com seus olhos de jabuticabas e pele de pêssego maduro por que eu sou professor. Olho para ele como quem levou uma bofetada.

• Porque estudei para isso é essa é minha profissão, digo sem convicção.

A resposta certamente não convence o garoto, que continua a me olhar, aquele olhar inquietante, que me despe com sua ingenuidade, curiosidade e, porque não, uma perversidade que só as crianças sabem ter com os adultos.

O sinal bateu. Salvo pelo gongo, penso comigo, aliviado. Minha próxima aula é daqui a duas horas, mas não vou para a sala dos professores porque estou cheirando a bueiro. Sento na carteira de uma sala vazia acreditando que lá, sozinho, posso pensar tranquilamente na história que estou escrevendo. Abro o laptop e releio o que já escrevi.

• Está uma bosta, falo em voz alta.

Reescrevo e de novo e de novo e assim num reescrever incessante e sem fim. Leio mais uma vez e, desolado, cansado, fecho a máquina violentamente. Chego a conclusão que é melhor desistir dessa coisa de gângster. Nada a ver. Anos 1940 … nada a ver. Apago tudo e começo outra história. Do zero, do nada, página em branco.

Frustração total, mas fazer o quê? Nem todos têm sucesso na primeira canetada, ou no arquitetar de um livro. Minha história não vinga porque é ruim demais, tenho que admitir sem vergonha de admitir que sou ruim. Onde é que eu estava com a cabeça quando pensei em ser escritor? Devia ter cheirado ou algo pior. Deleta. Começa de novo. E vai logo, cara, porque seu editor vai te ligar hoje te cobrando o livro e você não tem nada para mostrar. Nada!

Chegou a hora de voltar para minha classe e meus aluninhos. Agora tenho que me concentrar neles, na aula. Depois, em casa, sei que virá uma boa história, vou escrever com maestria e meu editor vai aprovar. Vai, cara, se aprume, dê 1000% de você neste livro!

Eu preciso de um bom banho. E de comida. Mas tem a mulher loira do sutiã de renda vermelha que eu fiquei de encontrar de novo hoje à noite…

Prev Post

Um sopro…

Next Post

Setembro é o 18º mês…

post-bars

Leave a Comment