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Jundiaqui

 Obsessão
19 de maio de 2020

Obsessão

Como um homem embrutecido pela vida conseguiu destruir a vida de uma mulher, mostra Cláudia Bergamasco

Cláudia Bergamasco

Rogério pegou com cuidado o binóculo que pertenceu a seu pai, datado da Segunda Guerra, e ainda em perfeitíssimo estado, com lentes poderosas, e foi para a janela. Puxou devagar uma parte da cortina para manter seu corpo no escuro. O objeto de suas lentes perscrutórias era Clarice, uma mulher que conhecera ainda jovem e sem a maligna ambição que hoje tomava seu ser por completo.

Contemplava a mulher à vontade, sem nunca ser visto. Sempre no anonimato. Era disso que gostava e a cada vez que o fazia tomava mais gosto. Via a silhueta altiva e elegante de Clarice fingindo assombro quando ela tirava a roupa olhando-se no grande espelho do seu enorme quarto. Apesar, da idade, ela ainda mantinha uma liberdade de gata, um tom indiferente, algo mercurial que a colocava fora do alcance de todos – menos de Rogério.

Na noite de 21 de abril, um sábado, passados 50 minutos das duas da madrugada, Clarice entrou em seu quarto ansiosa, desorientada, sem saber o que fazer com sua alma. Olhou seu rosto no espelho e chorou um ferimento recente, embora o observasse com estranhamento porque aquilo pertencia a algum momento do seu passado. Talvez fosse de fato um ferimento do passado que se reabriu. Com as mulheres é sempre assim, como Rogério já sabia. Não perdem nada que vivem. Carregam tudo o que lhes acontece de um lado para outro e, quando o acúmulo do vivido passa da conta, o excesso vem à luz sem que elas possam evitá-lo. Às vezes é um objeto, um aroma, uma roupa, um sapato; às vezes, um ferimento como o que a mulher vê no espelho que tem agora.

Rogério é uma vítima de suas ideias fixas, que ia deixando-as como tatuagens ao longo de sua vida medíocre e desassossegada que ele achava o máximo. Glória, poder. Impunha respeito pelo medo. Típico homem inseguro, arrogante e radical como um adolescente. O ferimento de Clarice voltou a sangrar naquela noite em que sua silhueta era vista difusa pelas lentes de um binóculo que desconhecia totalmente. Ela o amava, mas o homem a tinha como a escória da vida; ele apenas a usava. Clarice desabou de morte.

Rogério também tem um espelho na sala da casa que alugou para observar a antiga namorada e seu reflexo é apenas um eco do seu próprio corpo, algo hoje grotesco comparado ao jovem viril que um dia foi. Sozinho, ele não era ele mesmo, não se reconhecia naquele perfil de abdome volumoso, tão indiferente à ginástica e às dietas. Era impossível frear o cruel, inclemente e inexorável solapamento do tempo, atrasar a fatídica deterioração imposta pela maligna Natureza e a tudo o que existe. Os flácidos peitorais deixavam à mostra tetas moles, mamilos desmaiados, e uma desagradável dobra cobria seu sexo. Onde havia perdido a dignidade de seu corpo nu?, pensava Rogério na penumbra perscrutando Clarice e suas curvas ainda bem torneadas, mas com cicatrizes, celulite e estrias. Ela não era bonita, mas tinha um mistério que atraia.

Nenhum homem com o estranho hábito de observar uma mulher suspeita que se autodelata. Rogério estava quase nesse ponto. Sua apoteose seria se esconder naquele quarto e observar Clarice enquanto dormia indefesa. Essa ideia entrou nele e não o deixava mais em paz, estava preso a ela como um animal cego. Rogério queria sentir sua umidade, machucar seus pensamentos, queimar sua sombra, esfolar o ar que ela respirava, saltar dentro de seu sonho para se apoderar de tudo o que encontrar, detonar sua reputação, descobrir seus podres e anunciá-los ao mundo, desgraçar sua vida, desaboná-la de alguma maneira sabendo ser a maior mentira que contaria sobre outra pessoa. Tudo gratuitamente, sem um motivo específico. Clarice nada lhe fez, nenhum mal nunca lhe impingiu. Ele apenas tinha prazer demasiado em vê-la sofrer.

Ele havia chegado ao topo da profissão de jornalista à custa de ódios e agonias. Mas amava sua condição. Podia conceder ou negar o que bem quisesse a quem quer que fosse e o que bem entendesse. Amava o poder mais que a si mesmo. Seu mantra era “Non Ducor Duco”, que em latim quer dizer Não Sou Conduzido, Conduzo. Sim, a mesma frase impressa a sangue e guerra na bandeira da cidade de São Paulo. Talvez pelo fato de ter sido um garoto sem pai – o pai abandonou a família quando ele era pré-adolescente – e, assim, ter assumido o comando da casa. Começou aí seus mandos e desmandos. Também nesta época passou a acreditar que sentimentos são como unhas sujas: sempre devem ser encobertos ou cortados na carne. Aqui, vale a citação do poeta inglês Robert Browning (1812-1889): “O passado está em seu túmulo, embora seu fantasma nos assombre”. O fantasma era o pai.

Presa fácil – Clarice tinha o rosto doce e os olhos ingênuos de cervo. Em outros tempos, deixava os cabelos lisos e louros cortados à altura do maxilar e usava franjas, o que lhe dava um ar ainda mais provocador. Hoje eram longos, luminosos e deixara a franja. Sua ingenuidade e inocência a fazia presa fácil; sempre teve azar no amor. Agora, por causa de Rogério, abafava seus soluços, mas eram muitos e constantes. Rogério tinha obsessão por ela e com o tempo, passou a sentir uma vontade irreprimível de lhe fazer mal. Desejava vê-la sofrer, vagar descalça por baldios calcinados, mendigar, remexer no lixo, deixá-la como um bode famélico num pasto de areia e pedras. Quando você deixa de amar uma pessoa, tudo o que ela faz e representa passa a desagradar.

Havia, no entanto, uma contradição: Rogério sentia um vago embaraço diante dela, um remoto pudor que o devolvia à adolescência, e, ao mesmo tempo, uma sensação de liberdade que mulher nenhuma havia lhe proporcionado. Seu tom era cândido e ao mesmo tempo cauteloso. Como uma raposa explorando um bosque. Rogério nunca encontrou essa característica em outra mulher, o que deixava seu sexo sempre alerta.

Clarice ainda chamava a atenção de outros homens, e os músculos de Rogério se comprimiam com isso. O que lhe dava mais ganas de lhe impingir o mal. Não amava tampouco a mulher com a qual se casara havia mais de trinta anos. Seus bocejos o desagradavam, o cheiro de suor e leite coalhado de sua pele e os chinelos de coelho que usava para preparar o café da manhã lhe davam nos nervos. A separação era um incômodo pior do que continuar vivendo como até então. Era muito mais cômodo e financeiramente satisfatório continuar, apesar de tudo o que sentia e do que não mais sentia.

Acordava com ânsia para observar Clarice, persegui-la, arquitetar todos os dias uma forma de tornar o dia daquela mulher um inferno. Saia de casa agitado e suarento mesmo em meio a um lockdown de quase todas as cidades de todos os estados do país por causa do coronavírus, que tem matado milhões de pessoas no mundo. O Brasil está de quatro por causa do vírus e Rogério está de quatro apenas para Clarice.

Os jornalistas sérios têm que abrir espaço em meio ao emaranhado de versões falsas sobre a doença propaladas por todos os meios de comunicação desesperadas para chamar a atenção. Mas, de que adianta todas as mensagens imploradas para o povo ficar em casa para tentar conter a pandemia se Rogério tinha tatuado seu mantra no corpo e, principalmente, em seus atos: “Comando, não sou comandado”. As pústulas da pobre pátria estão abertas e Rogério nem aí com isso. Ele sempre tem razão, ele sempre tem a última palavra, ele sempre está certíssimo de tudo, ele sempre sabe de tudo, nada o atinge. Tem para si que nascera a salvo dos erros e acha que pode tudo. Especialmente perseguir Clarice.

Deus do céu, o que desatou esse comportamento obtuso neste homem? O amor próprio ferido? A honra ferida? Ou o desejo de posse? Simples assim, o desejo de possuir uma vida lhe servisse de marionete para suas infinitas maldades. Até os homens mais sensatos podem sucumbir a um (ou muitos, no caso de Rogério) acesso de loucura e não há nada mais difícil entender as razões de um perseguidor. A inteligência de Rogério regredia a um estado animal, pré-histórico, a cada ato de maldade bem-sucedido contra Clarice. Ele tinha uma linha de pensamento bem sinuosa: por que castigar um ser humano que deixa de ser ele mesmo e permite que, durante relâmpagos de tempos, os instintos primevos tomem o lugar de seus pensamentos, de suas loucas ilações a respeito de uma mulher? Afinal, o que valia ela? Para ele, nada além de cinzas. Ou melhor, objeto de despejo de suas frustrações, incapacidades, decepções, incoerências, obsessões, covardias e prazeres sórdidos.

Com um sorriso arrogante, de canto de boca, Rogério desejava ir além. Remoía-lhe o pensamento fixo de entrar no quarto de Clarice, remexer em seu closet, sentir o cheiro de suas roupas, escarafunchar suas gavetas de roupas íntimas, seus papéis, seus livros, abrir seu computador e virá-lo pelo avesso, investigar a fundo seu celular e seu tablet, acabar com tudo, destruir tudo o que ela havia construído ao longo de sua vida considerada por ele torta e banal. Ela era perfeita para ele. Sua ingenuidade e nenhuma sabedoria no campo da informática perfazia o bode expiatório perfeito para Rogério vomitar suas desejos maldosos mais recônditos.

Achou um jeito de a observar mais: contratou um especialista em drones e pelo menos duas vezes por semana o aparelho sobrevoava a casa de Clarice tentando captar mais do que imagens de jardins e janelas. A segurança do bairro entrou em alerta e denunciou à polícia. Rogério retrocedeu e mandou carros com detetives à paisana rondar as redondezas para verificar se algum automóvel estava parado na sua garagem, na frente da casa. Os homens faziam plantão ali perto e relatavam o dia para Rogério. Chegaram a investir em cantadas baratas, a mando de Rogério, mas Clarice os descartava na hora. Nada acontecia. Nada. Rogério ficava intrigado e fora de si. Aumentava ainda mais seu desejo de destruir Clarice.

A mulher desconfiou que algo estava errado e essa desconfiança foi crescendo até que descobriu um grampo no seu telefone e uma câmara de vídeo em seu quarto. Ficou totalmente desconcertada. Quem faria isso? Como faria isso? Para quê?

Demorou, mas ela uniu os pontos e chegou a Rogério. Foi muito difícil de acreditar, mas não havia dúvidas. A essa altura, toda sua alegria, sanidade, vontade de viver haviam sido sugadas. Tornou-se uma mulher apática. Decidiu que se mudaria daquela casa, daquela cidade para um lugar que ele jamais descobriria, um lugar incerto e desconhecido. Estava disposta a abrir mão de seu emprego, dos amigos e dos parentes. Teria que viver na clandestinidade por um tempo.

Rogério soube. Clarice estava mais distraída, como se tivesse perdido a si mesma. Que descarada esta mulher! É assim que você me paga tantas noites em claro percorrendo sua vida, fazendo pouco de mim, te salvando dos homens mal intencionados, vigiando seus passos, espreitando tudo que você fala e escreve e para quem? Isso é traição. Intolerável! Vou destruí-la, Clarice. Hei de imprimir em sua carne uma marca indelével que mostre quem manda em você. Afinal, você é apenas um objeto, uma ratazana velha.

Rogério sufoca um pouco sua cólera e impotência temporária. Quem essa imbecil pensa que é? Essa sombra de nada, essa merda de gambá, como pode fazer isso comigo? Ahh, mulher, você não faz ideia de quem está ofendendo. Sou eu quem decide como e onde você vai viver a vida e se vai viver.

Ao pensar alto tudo isso ele ouvia o tremor elétrico do seu próprio corpo e projetava o de Clarice, que tanto odiava e amava. A cada passo seu havia menos ar e mais hostilidade. Rogério estava possesso. Será mesmo que não poderia mais inventar fatos, como antes, ser um malabarista manipulando, “corrigindo” e deslocando os que a realidade lhe oferecia? A vida não poderia ser-lhe injusta a esse ponto.

Mais calmo, depois de tomar uns goles, sabia que um dia teria que encarar Clarice cara-a-cara e contar a ela tudo o que fez. Talvez ele sentisse alívio, talvez as coisas todas se encaixassem depois de procurar por isso por muito tempo. Espantou-se de que aquela mulher à toa o fizesse tremer como um adolescente. Nunca ninguém assim tinha entrado em seus sonhos. E, no entanto, tudo o que ela dizia e fazia o tocava e o feria como ácido. Tudo o que Clarice dizia lhe tirava o fôlego e entrava em seu passado, mas ele, estranhamente, se sentia seguro com ela. Fazer-lhe mal era pirraça por ela ter-lhe rejeitado.

Ela pode ir a qualquer lugar. Pode pular de cidade em cidade. Um dia ela vai ter que parar. E eu a estarei esperando. Ela pode se sentir livre o tempo todo, pois aonde ela for, sempre me pertencerá, falou Rogério em voz alta para ele mesmo, apertando seus dedos contra a palma de suas mãos até sangrar. Eu sou assim, Clarice, fui criado assim, o mundo me fez assim e eu gosto do que me tornei. Jamais vou mudar. Você me traiu e talvez eu acaricie sua cabeça, não por misericórdia, porque esse sentimento a ofenderia, mas por amor a mim mesmo, por toda uma vida que eu perdi contemplando você.

Contemplando e cuidando de você. Do meu jeito.

Cláudia Bergamasco é escritora

 

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