Por Valquíria Malagoli
Dia desses, minha filha e eu observávamos uma taturana ziguezagueando pela garagem...
Fatigada da distração, ela me propôs que entrássemos, ao que me mostrei contrariada, dizendo que eu poderia, com tranquilidade, passar o dia todo naquela tarefa.
– Como poderia? Você precisa fazer o almoço, deixar tudo em ordem, cuidar da gente, essas coisas...
Obviamente sorri, afinal, eu, a adulta, falava do tocante ao meu desejo, enquanto que ela, a criança, pensava nas obrigações. Tudo, pois, no seu devido lugar!
Embora eu estivesse absolutamente fascinada com a visão daqueles longos cabelos voando ao vento leve, igual faz um marujo admirando a embarcação flutuar... Apesar também de eu ficar arrebatada por seu sorriso brilhantemente alinhado por força do aparelho, por sua voz risonha, por estar, enfim, diante desta criatura à qual adjetivo algum alcança... ainda assim, pude, de relance, notar as mangas no quintal da vizinha. E consegui retê-la, ali, comigo por mais um pouco à sombra de meu deleite, e, claro, à sombra concreta (tanto quanto pode ser concreta uma sombra) da majestosa mangueira.
– Filha... Veja como as frutas já começam a amadurecer!
Ela olhou simplesmente. Sem dizer palavra.
– Sabia que elas conversam comigo?
– Quem, mãe?
– Ora, as mangas!
...
– Aqui entre nós, acho isso bem estranho...
– Eu também acho, né, mãe.
– Concordo, filhinha. Afinal, não é da natureza das mangas falar. E essas aí falam.
– Estranho é você ouvir.
– Ué, eu tenho ouvidos.
– Eu também tenho e não escuto nada.
– Isso se explica facilmente: sou eu quem fica ali na varanda, quando está ardendo o sol, quando os sanhaços vêm repousar debaixo do frescor dos galhos, e quando as vespas roçam as frutas. Tenho, portanto, mais oportunidade que você de prosear com elas. Mesmo porque é bem nessa hora que elas tagarelam. Vai ver aprenderam a confiar em mim, sei lá. Como as andorinhas transitam pelo céu, confiando nas pipas, sem saber sequer que os meninos é que as empinam, e que nenhum deles tem carta de motorista, ou permissão pra voar.
Aparentemente, para minha surpresa, ela não pareceu me levar a sério.
Tanto é verdade, que retornou à investigação da taturana fofa. Insisti.
– Imagino que agora estejam fazendo a sesta. Reparou como estão quietas?
Quis provocá-la até o limite, por isso, mantive os olhos fixos nas alturas, donde as mangas precipitavam-se. No muro, bastante próximo, um gato amarelo espreguiçava as pernas, e depois as encolhia, espreguiçava e encolhia, espreguiçava...
Contei a ela a respeito de um amigo meu, o Roberto, que é marido da Vera, a bibliotecária, que mora lá perto da casa do Alexandre...
– ... resumindo, filhinha, essa história é ou não é uma maluquice?!
– Ah, tá bom. Ele que é maluco? Só porque conversa com grilos em pensamento é maluco?
– Você não entendeu, amor. Ele não tem grilo na cuca, não. Isso é música do Dudu França; nem é do seu tempo.
– Não foi isso que eu disse. Foi você que disse. Disse que ele conversa com grilos...
– ... e sapos
– e sapos!
– ... e vagalumes...
– Eu entendi! Tudo à noite. Da janela. Em silêncio.
– Isso. Mentalmente.
– Isso qualquer um faz. É uma brincadeira, mãe. Vai dizer que você nunca fez isso quando era pequena...
– Mas ele é adulto, filha. Mais velho que eu, inclusive.
Ela pasmou. E sorriu novamente, porém, desta vez, foi um riso inseguro, e, segurando-se na grade interrompeu por um momento o exercício de subir e descer, a fim de mirar-me melhor.
Eu, por minha vez, neste exercício recorrente de fascinar-me a qualquer gesto seu, não pude deixar de rir quando notei que seu corpinho esguio ficou suspenso no ar, todo curvado: mãos e pés muito próximos, queixo e calcanhares quase juntos.
– Mãe, você só pode estar brincando!
– Não, filha. Você está! Aliás, está brincando de quê? De vírgula? Porque parece uma, aí, toda torta.
– Não é possível, mami. Fala sério. Pra começo de conversa, mangas não falam. Ah, deixa pra lá. Você tá fazendo piada.
– Ai ai ai... que elas não nos ouçam, filha. Imagine, fazer piada da vida dos outros...
Valquíria Malagoli é escritora
Dia desses, minha filha e eu observávamos uma taturana ziguezagueando pela garagem...
Fatigada da distração, ela me propôs que entrássemos, ao que me mostrei contrariada, dizendo que eu poderia, com tranquilidade, passar o dia todo naquela tarefa.
– Como poderia? Você precisa fazer o almoço, deixar tudo em ordem, cuidar da gente, essas coisas...
Obviamente sorri, afinal, eu, a adulta, falava do tocante ao meu desejo, enquanto que ela, a criança, pensava nas obrigações. Tudo, pois, no seu devido lugar!
Embora eu estivesse absolutamente fascinada com a visão daqueles longos cabelos voando ao vento leve, igual faz um marujo admirando a embarcação flutuar... Apesar também de eu ficar arrebatada por seu sorriso brilhantemente alinhado por força do aparelho, por sua voz risonha, por estar, enfim, diante desta criatura à qual adjetivo algum alcança... ainda assim, pude, de relance, notar as mangas no quintal da vizinha. E consegui retê-la, ali, comigo por mais um pouco à sombra de meu deleite, e, claro, à sombra concreta (tanto quanto pode ser concreta uma sombra) da majestosa mangueira.
– Filha... Veja como as frutas já começam a amadurecer!
Ela olhou simplesmente. Sem dizer palavra.
– Sabia que elas conversam comigo?
– Quem, mãe?
– Ora, as mangas!
...
– Aqui entre nós, acho isso bem estranho...
– Eu também acho, né, mãe.
– Concordo, filhinha. Afinal, não é da natureza das mangas falar. E essas aí falam.
– Estranho é você ouvir.
– Ué, eu tenho ouvidos.
– Eu também tenho e não escuto nada.
– Isso se explica facilmente: sou eu quem fica ali na varanda, quando está ardendo o sol, quando os sanhaços vêm repousar debaixo do frescor dos galhos, e quando as vespas roçam as frutas. Tenho, portanto, mais oportunidade que você de prosear com elas. Mesmo porque é bem nessa hora que elas tagarelam. Vai ver aprenderam a confiar em mim, sei lá. Como as andorinhas transitam pelo céu, confiando nas pipas, sem saber sequer que os meninos é que as empinam, e que nenhum deles tem carta de motorista, ou permissão pra voar.
Aparentemente, para minha surpresa, ela não pareceu me levar a sério.
Tanto é verdade, que retornou à investigação da taturana fofa. Insisti.
– Imagino que agora estejam fazendo a sesta. Reparou como estão quietas?
Quis provocá-la até o limite, por isso, mantive os olhos fixos nas alturas, donde as mangas precipitavam-se. No muro, bastante próximo, um gato amarelo espreguiçava as pernas, e depois as encolhia, espreguiçava e encolhia, espreguiçava...
Contei a ela a respeito de um amigo meu, o Roberto, que é marido da Vera, a bibliotecária, que mora lá perto da casa do Alexandre...
– ... resumindo, filhinha, essa história é ou não é uma maluquice?!
– Ah, tá bom. Ele que é maluco? Só porque conversa com grilos em pensamento é maluco?
– Você não entendeu, amor. Ele não tem grilo na cuca, não. Isso é música do Dudu França; nem é do seu tempo.
– Não foi isso que eu disse. Foi você que disse. Disse que ele conversa com grilos...
– ... e sapos
– e sapos!
– ... e vagalumes...
– Eu entendi! Tudo à noite. Da janela. Em silêncio.
– Isso. Mentalmente.
– Isso qualquer um faz. É uma brincadeira, mãe. Vai dizer que você nunca fez isso quando era pequena...
– Mas ele é adulto, filha. Mais velho que eu, inclusive.
Ela pasmou. E sorriu novamente, porém, desta vez, foi um riso inseguro, e, segurando-se na grade interrompeu por um momento o exercício de subir e descer, a fim de mirar-me melhor.
Eu, por minha vez, neste exercício recorrente de fascinar-me a qualquer gesto seu, não pude deixar de rir quando notei que seu corpinho esguio ficou suspenso no ar, todo curvado: mãos e pés muito próximos, queixo e calcanhares quase juntos.
– Mãe, você só pode estar brincando!
– Não, filha. Você está! Aliás, está brincando de quê? De vírgula? Porque parece uma, aí, toda torta.
– Não é possível, mami. Fala sério. Pra começo de conversa, mangas não falam. Ah, deixa pra lá. Você tá fazendo piada.
– Ai ai ai... que elas não nos ouçam, filha. Imagine, fazer piada da vida dos outros...
Valquíria Malagoli é escritora