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Jundiaqui

 “A Ponte de Bambu” chega na televisão brasileira
10 de maio de 2021

“A Ponte de Bambu” chega na televisão brasileira

Filme do diretor Marcelo Machado sobre a família Martins, de Jundiaí, e sua experiência na China, passa a ser exibido nos canais da Globo 

Cláudia Bergamasco 

Num tempo em que as vacinas ainda são escassas no Brasil (e no mundo) e sobrevêm novas temporadas de isolamento social (no Brasil e no mundo) como forma de a humanidade sobreviver a uma das mais tenebrosas eras que o planeta já passou em questões de saúde, o combate ao Coronavírus, a cultura ganha espaço na televisão. A telinha entrou para o grupo das diversas plataformas virtuais de exibição de produções culturais e atinge o grande público.

Pronto há quase dois anos e praticamente ceifado de ser exibido em salas de cinema por todo o Brasil desde 2019, o filme “A Ponte de Bambu”, do cineasta Marcelo Machado, chega finalmente na tevê. Até então, a exibição desse documentário estava apenas em canais on-line. Nesta quarta-feira (12), às 20 horas, inicia sua trajetória na Globo, a partir do Canal Brasil.

Há muito o que dizer sobre esse filme. Ele conta a história da família jundiaiense Martins, que tem como patriarca o jornalista Jayme Martins, exilado em plena ditadura militar no Brasil num país tido como “perigosamente” comunista, a China.

Abaixo, um ping-pong gostoso com Marcelo Machado, que falou com exclusividade para o JundiAqui sobre o filme, sobre as imensas dificuldades pelas quais passa a produção cultural no Brasil, especialmente no governo Bolsonaro, que, segundo Machado, tenta a todo custo destruir e/ou paralisar todas as formas de cultura no país. Fala também sobre tecnologia, o “novo normal” e um pouco sobre seu novo documentário, ainda em fase de desenvolvimento.

JundiAqui – A Ponte de Bambu tinha toda uma arquitetura de divulgação/exibição montada nos cinemas de todo o país a partir de 2019, mas desmoronou por causa da pandemia de Covid 19, que ainda é devastadora. Passou, então, a ser divulgado em lives, canais on-line e, agora, atinge o grande público com sua exibição também na tevê. A seu ver, como a pandemia afetou a trajetória do filme?

Marcelo Machado – O filme estrearia no festival ‘É Tudo Verdade’, que é um festival de documentários, em setembro-outubro de 2019, e na sequência ele iria para as salas comerciais, os cinemas. Foi jogado para março-abril de 2020 e aí não mais presencial e sim remoto, on-line. Com os cinemas fechados, não houve um lançamento, uma estreia convencional.

Fiquei um tempo grande esperando em 2020 e já estava quase desistindo das salas, pedindo para entrar direto no streaming, que são esses canais de distribuição de conteúdo via internet, como Netflix, GloboPlay, Vimeo, Amazon, Disney. Quando chegou no início deste ano (2021), entrou em pouquíssimas salas comerciais do circuito do Itaú-Unibanco. Mas as pessoas não estavam indo ao cinema. Foi uma tentativa frustrada de o filme ser exibido em sala porque a pandemia obviamente afastou o público. Então o filme ficou disponível nessas plataformas em que está até hoje, que são NetNow, OiPlay, VivoPlay, AppleTV e GooglePlay, onde você entra e paga para ver on-line.

A partir desta semana (12/05), entra no seu destino final, que é a televisão. É um documentário feito com o apoio da GloboFilmes e que tinha, de fato, o destino final de exibição a televisão. Posso dizer que ele chega enfim à sua plataforma correta de exibição. O Canal Brasil, que é do grupo Globo, e é por onde ‘A Ponte’ começa a passar, tem três anos de direito de exibição, e também vai para a GloboNews e outros canais ligados ao grupo Globo.


Acima o cartaz oficial do filme baseado numa foto tirada na década de 1970 na Praça Tian An Men (Paz Celestial), em que aparecem, da esquerda para direita, Andrea, a mãe de Jayme, dona Joana (que no cartaz foi trocada para um desenho de sua esposa, Angelina), Raquel e Jayme Martins

JundiAqui – Essa demora, esse gap, não te frustra?

Machado – Bastante, mas essa condição (sanitária) é internacional, está no mundo inteiro. A gente vive uma pandemia e por isso entendo a excepcionalidade. É claro que eu queria que fosse diferente. Por outro lado somos forçados a fazer o que podemos nos meios (de exibição) que restam. Acho que na televisão o filme está num espaço muito bom, correto, as pessoas vão assistir porque serão muitas exibições. Começa agora, seguem-se três reprises, depois exibem de novo, logo mais a GloboNews exibe também. Enfim, o filme passa a ter uma vida televisiva que eu acho ótimo.

JundiAqui – Você teve que mudar alguma coisa para o filme ir para a televisão? É exatamente o mesmo filme para todas as telas – celular, tablets, computadores, televisão e cinema?

Machado – Nada foi mudado. Ele tem uma mixagem de áudio 5.1 para salas porque tem a ambiência, e 2.0 para as demais plataformas porque é o stereo das tevês. Nas plataformas de streaming ele está 5.1 porque as pessoas têm home theater e é possível ter a sensação de ambiência quando se tem o equipamento em casa. Mas é só uma questão técnica, de mixagem.

Acima, em 1972, na Cidade Proibida, Andrea e Raquel posam na estátua de um dragão, com Angelina e Jayme à frente

JundiAqui – Você mudaria alguma coisa em “A Ponte de Bambu” hoje, depois de tanto tempo de pandemia e de uma exibição on-line, indo só agora para a televisão?

Machado – Eu mudaria várias coisas. Quando a gente faz um filme, principalmente um documentário, ele é resultado de um processo que quase nunca tem fim. Chega uma hora que você tem que parar e dar o filme por concluído. Mas, nesse caso, tem uma única fotografia, em que o Jayme aparece com Mao Tsé-Tung (hoje se diz “Mao Zedong”, líder comunista e revolucionário chinês, o fundador do Partido Comunista na China. Foi o arquiteto e fundador da República Popular da China, governando o país desde sua criação, em 1949, até sua morte, em 1976). Eu conhecia essa foto e deixei de usar por um lapso de memória.

Recentemente saiu uma entrevista sobre a Raquel num grande jornal finlandês (Raquel Martins mora com sua família em Helsinque, Finlândia desde 2016, depois de 45 anos na China) e essa foto foi publicada. Eu vi e pensei “como eu não pus essa foto no filme?” Era um encontro de especialistas estrangeiros com o centro do Partido Comunista e você vê o Jayme Martins nesse grupo, de umas 200 pessoas. Mas é a única foto em que estão o Mao e o Jayme e que não usei. Se eu continuar pesquisando a vida do Jayme, da Angelina, da Andrea e da Raquel, eu vou encontrar outras fotos como esta, vou encontrar outras histórias que eu vou sentir que ficaram fora. Esse trabalho não tem fim.

Eu tenho incentivado, em debates em universidades, como a USP e a Unicamp, que universitários e acadêmicos procurem o acervo do Jayme, que é muito mais rico do que eu pude usar no filme. A quantidade de fotos, cartas, documentos que o Jayme tem arquivado é trabalho para um grupo acadêmico, que passe alguns anos lendo, organizando, colhendo informações. Não é um documentário que vai dar conta da riqueza da experiência dessa família.

“Tem uma única fotografia em 
que o Jayme aparece com 
Mao Tsé-Tung. Eu conhecia essa 
foto e deixei de usar por um 
lapso de memória”

JundiAqui – Queira ou não eles fazem parte da história. Por exemplo, o Jayme, como jornalista que é, relata em detalhes um acontecimento importante da história mundial, como o Massacre da Praça da Paz Celestial, em 1989, para jornais, rádios e revistas brasileiros.

Machado – Exatamente. É a importância da experiência dessa família para o Brasil. Quero chamar atenção para a questão das mulheres. Até aqui viemos concentrando nossas atenções para o papel que os homens desempenharam nas relações de toda ordem, nas relações humanas, familiares, políticas, e agora estamos despertando para uma fase em que vamos ouvir a história contada por mulheres, pelos negros, por outros grupos sociais. Está sendo muito rico ouvir essa faceta da história.

Eu gosto de falar da família porque acho que a Angelina, a Andrea e a Raquel completam muito a narrativa do Jayme. Ouvir a narrativa do Jayme sozinho sem ouvir essas mulheres que estavam ao lado dele o tempo todo é quase como ouvir metade da história ou menos que isso. Fico muito feliz de ter ouvido a Angelina, por mais que ela não goste de falar. Ao contrário do Jayme, que adora contar suas histórias, a Angelina é meio avessa às câmeras, porém eu acho que ela tem um papel fundamental para perceber a complexidade, os conflitos dentro da família. Como as nossas, todas as famílias têm conflitos, e esse aspecto humaniza muito a história deles.

É possível você se projetar na família e ver que nem sempre seu pai e sua mãe pensaram iguais, reagiram de uma forma igual ao que acontecia e existe uma riqueza nesses diferentes pontos de vista. As experiências da Raquel e da Andrea vão muito além das do que o Jayme viveu naquele período, porque elas tiveram outras oportunidades (Raquel e Andrea moraram e trabalharam em vários países). Para mim, ali a família ganhou corpo e eu fiquei muito feliz com o resultado, que se completou muito com a visão dessas mulheres, deixou o filme mais contemporâneo.

Na foto acima, Angelina em meio a crianças chinesas, numa fotografia tirada por volta de 1962-63

“Ouvir a narrativa do Jayme 
sozinho sem ouvir essas 
mulheres que estavam ao lado dele 
o tempo todo é quase como 
ouvir metade da história 
ou menos que isso”

JundiAqui – Eu quero falar um pouco sobre esse “novo normal”. A pandemia nos ensinou muita coisa e talvez, em uma série de situações, nós não voltemos mais ao que era antes. Como cidadão e cineasta, como você define o que é o novo normal.

MachadoEu entendo o novo normal como uma condição de restrição, onde você não pode ter o contato físico e viabiliza a vida por meios das ferramentas da internet, do on-line. É claro que isso não é normal, é uma condição excepcional. Essa pandemia acontece numa etapa de desenvolvimento da civilização em que existe esse grande recurso que é a internet. O on-line, o remoto, o em casa, passa a ser a realidade das pessoas. Eu, por exemplo, passo quase todos os meus dias nessa realidade de trabalho que as pessoas chamam de novo normal. E existe uma outra excepcionalidade que estamos vivendo, que é o momento político…

JundiAqui – Eu ia chegar nesse ponto…

MachadoO governo atual tem grandes restrições ao desenvolvimento da ciência e da produção cultural. Uma aversão mesmo, uma tentativa de destruição e perseguição à produção cultural. Está muito difícil para o cinema, para o audiovisual. Os mecanismos que existiam de financiamento, patrocínios, as possibilidades de leis de incentivo, tudo ficou muito restrito. Muita coisa ainda não terminou e está paralisada. Então nós, cineastas, documentaristas, estamos muito restritos. Os projetos estão parados.

Eu fico muito angustiado, tenho muita ansiedade de querer fazer a vida andar, mas ela nem sempre anda. Ano passado foi um ano de abrir muitas frentes, mas tudo patinou, coisas que pareciam que iam dar certo não aconteceram principalmente pela falta de financiamentos e incentivos. A Ancine, que era a nossa agência reguladora e que,  excepcionalmente, funcionava como uma agência fomentadora, virou uma paralisia. Nós não temos mais um Ministério da Cultura e sim uma secretaria, com um secretário (Mário Frias, o quinto a ocupar a pasta nos dois anos de governo Bolsonaro) extremamente ideológico, com uma visão conservadora e um pensamento de extrema direita fazendo a defesa de valores ditos cristãos. Mas eu entendo que um dos principais valores cristãos é a solidariedade. Então, não existe a possibilidade de produções culturais que estejam em desacordo com a Secretaria da Cultura e nem mesmo as que estão em acordo. Na verdade, o Frias posa como secretário da cultura e é, na verdade, uma inação. Ele não está fazendo nada de concreto.

A Cinemateca Brasileira está fechada com risco de perdermos um dos maiores acervos audiovisuais, senão o maior acervo da América do Sul, com risco de incêndio. Ali temos não só os acervos do cinema, como da televisão brasileira e coisas históricas, como ‘Cine Jornal’ da época do Getúlio Vargas, ‘Canal 100’, ‘Jean Manzon’, ‘Primo Carbonari’. Não é só o Cinema Novo ou os meus filmes. Está lá a história e a memória do país.

“O governo atual tem grandes
restrições ao desenvolvimento
da ciência e da produção cultural”

JundiAqui – E temos uma geração inteira que não sabe e nunca viu nada dessas preciosidades cinematográficas…

MachadoPois é. Existe essa visão contrária da cultura e do cinema e isso para nós é tão ou mais danoso que a própria pandemia. Esse é o fato.

Aqui acima, Jayme faz uma refeição em um restaurante de rua na China, por volta de 1962-63, início do exílio involuntário

JundiAqui – Eu posso afirmar que você tem muitas ideias para novos trabalhos mas não está conseguindo tirar do papel?

MachadoEu particularmente tive a sorte de ter um projeto apoiado por um organismo cultural ligado a um banco. Estou fazendo neste momento o desenvolvimento de um documentário sobre um artista com o apoio do Itaú Cultural.

JundiAqui – E você pode divulgar quem é esse artista?

MachadoPosso, é o Guto Lacaz (artista multimídia, ilustrador, designer, desenhista e cenógrafo brasileiro). Recebi esse apoio em dezembro de 2020, já estou no último mês de desenvolvimento e, paralelo a isso, tenho vários projetos que ainda estão pendentes por ter que achar patrocínio, apoio para sair do papel. Sei que isso não vai ser fácil.

JundiAqui – Como você está fazendo as entrevistas, as filmagens externas?

MachadoQuando saímos da fase vermelha de restrições fizemos algumas entrevistas com o Guto tomando todas as precauções. Os protocolos para filmagem são assim: você testa toda a equipe e o elenco para ter certeza de que não tem ninguém contaminado. Aí você vai para set de filmagem, que tem que ser muito aberto, arejado, a equipe toda de máscara. Todos os equipamentos são desinfectados com álcool isopropílico, principalmente microfones, as mãos com álcool em gel e guardamos distanciamento de dois metros ou mais do entrevistado. Mas como o desenvolvimento é muito mais a pesquisa de arquivo e o desenvolvimento de roteiro, conseguimos fazer muita coisa on-line.

JundiAqui – Como você pretende divulgar esse novo trabalho? Só por plataformas virtuais?

Machado – Eu só tive o apoio para o desenvolvimento e não tive ainda os meios para terminar, fazer a produção e a pós-produção. Não tenho os caminho ainda de financiamento para essas fases. Depende de toda uma costura para isso vir a acontecer. Mas isso é da natureza do meu trabalho, tenho que buscar. Nunca é fácil fazer cinema no Brasil. Temo que eu não consiga tão cedo esses meios, que eu tenha que parar por alguns meses, até ano que vem, não sei, até que a gente tenha condições de executar e finalizar esse projeto. ‘A Ponte de Bambu’, por exemplo, demorou seis anos entre a ideia original e o filme ser exibido. E tem projetos que demoraram mais, oito anos, e outros menos. Por exemplo, o ‘Com a Palavra Arnaldo Antunes’ (o cantor e compositor), que está na Netflix, foi muito rápido, um cronograma total de um ano e dois meses. É uma exceção, porque documentários têm uma certa maturação, algo que se cozinha em fogo lento.

JundiAqui – A pandemia abriu o leque de plataformas para a divulgação de filmes ou dificultou?

MachadoEsse é um processo que já vinha acontecendo antes da pandemia. Já havia a Netflix e a pandemia nos deu uma situação perfeita para a divulgação nos meios virtuais porque as pessoas devem ficar em casa, isoladas, e viraram a principal janela de exibição. As telas hoje são múltiplas, desde um celular até a tela grande do cinema, passando por tablets, desktops, notebooks, as telas de televisão que hoje são telas para o cinema em casa. Você tem múltiplas telas e múltiplas plataformas para chegar nessas telas. E todas elas usam a internet como canal de distribuição. Isso já vinha acontecendo e a pandemia só intensificou esse processo.

JundiAqui – A divulgação nessas plataformas virtuais tem uma resposta do público imediata, com postagens sobre o filme em redes sociais. Essa reação instantânea é boa ou ruim?

MachadoElas são um termômetro, você sabe se está tendo muitos views e likes na hora. Isso é muito angustiante e perverso, porque às vezes um filme enfrenta alguma dificuldade num primeiro momento mas logo ali na frente vai estabelecer seu público, ganhar a sua pertinência para um segmento, um público determinado. E agora temos uma coisa de simultaneidade, de ser avaliado logo no lançamento da obra. É um pouco angustiante, mas é também um sinal dos dos tempos. O que eu tento ver é se isso não altera minha produção. Porque senão você começa a pensar com a cabeça de youtuber. Começa a fazer coisas que pode te dar a maior quantidade de audiência imediata e se você vai contar uma história como a da família Martins você não pode ter esse imediatismo como critério, porque simplesmente você não conta essa história. É uma história que envolve décadas, tempo, conhecimento de História, de percepção do que é o mundo, de ideologias. Temos que ter cuidado com as discussões muito polarizadas, o que pode levar a julgamentos precipitados se você vai para as redes.

“O virtual é muito angustiante e muito 
perverso. Temos a coisa da
simultaneidade, de ser avaliado 
logo no lançamento da obra”

JundiAqui – Fica tudo muito rápido demais e se pode perder o foco…

MachadoVeja ‘A Ponte de Bambu’. O filme começa com uma afirmação do Jayme de que ele fez um percurso até chegar ao comunismo, ele usa esta palavra. Essa é uma palavra com um desgaste muito grande, tem muita gente que abomina essa ideologia. No entanto, quem conhece o Jayme percebe que ele é um homem do bem comum. Que nunca foi de pegar em armas, de massacre.

Quando ele volta da China, por exemplo, ele chega em Jundiaí e vai se integrar da despoluição do rio Jundiaí, a recuperação do Polytheama, ele vai para as tarefas municipais, aquilo que pode ser melhor para esta comunidade. Hoje tem muito julgamento precipitado nas redes. E aí você conta uma história com aspecto muito datado como essa de ‘A Ponte’ e é julgado muito precipitadamente nas redes.

O que me resta é, como diretor, mostrar que as coisas não são bem assim, você pode saber que durante o período do Mao Tsé-Tung, milhões de pessoas morreram na China, de fome num primeiro momento, mas que não é que o personagem que está na China apoiou, que aderiu à esse massacre, essa desumanidade. Mas nas redes sociais as coisas ganham uma emergência, uma urgência que é bem complicada de lidar. É preciso aprender a trabalhar com isso.

JundiAqui – Você falou sobre política e hoje, no Brasil, estamos vivendo uma crise que envolve a China, com um presidente que nega tudo o que vem da China e até releva a importância daquele país para o mundo, o que gera um enorme desconforto diplomático entre Brasil e China e que trás dificuldades imensas para nós, brasileiros, incluindo a questão das vacinas contra o Covid 19. Como você vê a divulgação de um filme que tem como protagonista um personagem que foi exilado na China numa época extremamente difícil, de ditadura por aqui, e que o Brasil de hoje é liderado por um negacionista e é evidentemente contra a China?

MachadoQuando eu vi que o filme estava ficando pronto percebi que ele estava chegando na hora certa. Porque o assunto China estava na pauta (além do Coronavírus, o governo Bolsonaro já tinha se manifestado contra o país, ao que os exportadores do agronegócio chiaram porque grande parte das exportações nacionais – soja, por exemplo – são para a China). Não que o filme trazia um esclarecimento total, porque China é um assunto muito complexo, você não vai resolver num filme. Mas ele trazia elementos para as pessoas começarem a refletir, um assunto contemporâneo, atual. Com a pandemia ainda mais. A questão é que ‘A Ponte de Bambu’ não é um filme pró-China nem anti-China. Então, nessa polaridade em que vivemos, nessa coisa obtusa do bem e do mal, esse maniqueísmo, você perde uma riqueza muito grande de detalhes e a complexidade do mundo contemporâneo. Se fosse um filme anti-China ele teria um grande apoio desse público mais conservador, ligado ao bolsonarismo. E se fosse pró-China, seria um filme mais fácil de ser digerido. Eu vejo muitas pessoas que se incomodam por não ser um filme que ataca ou defende a China. 

“A questão é que A Ponte 
de Bambu não é um filme 
pró-China nem anti-China”

JundiAqui – Mas se trata de um filme sobre uma família. Se ele se passasse na Índia, na Austrália ou na Rússia seria a mesma coisa. Ou não?

MachadoEu esperava uma reação mais forte, mais quente ao filme e sinto que há uma dificuldade em ser entendido por quem espera um filme contra ou a favor da China.

Nesta foto, Angelina e Jayme com companheiros de trabalho próximo da Grande Muralha da China, em foto, já em cores, datada da década de 1970.
Crédito: Arquivo da família Martins.

JundiAqui – Voltando um pouco a falar sobre cinema, o escurinho da grande sala, minha percepção é a de que não voltaremos a ter a mesma relação de antes da pandemia com as telonas. Esse relacionamento virtual, impessoal até, pode impactar de que forma na vida cultural das pessoas?

MachadoImpacta vida de todas pessoas, de todas as idades e classes sociais. Tudo muda. Como você, eu também gosto do escurinho do cinema, das salas e do ritual de assistir um filme na telona. É uma experiência muito rica. Eu não vou falar a palavra “insubstituível” porque eu acho que ao longo do tempo essa experiência vai achar uma nova forma de ser. Eu tenho um amigo que estudou pré-cinema, outras formas de audiovisual que deram origem ao cinema que conhecemos – algo como do daguerreótipo às câmaras de celular -, e tudo era muito mágico e fascinante. Até pouco antes da pandemia muitos profissionais da minha área estavam migrando para a chamada realidade virtual, que é o cinema imersivo, com óculos 3D, você passa a habitar um ambiente e é uma experiência incrível. Daí vamos para a questão de que todos diziam de que a fotografia era a morte da pintura, o kindle a morte dos livros, a internet a morte dos jornais e revista, a televisão a morte do cinema. As coisas vão evoluindo de uma forma em que tudo coexiste e se complementa, são conviventes.

Há algum tempo falamos da falência das megastores com o fim do livro de papel. Pelo contrário, houve um aumento grande do número de pequenas editoras, com mais livros, reedições, novas edições. Então, uma plataforma não mata a outra. E mesmo frente a um governo como esse nosso de hoje, em que a perseguição, a guerra cultural, para usar uma expressão que eles mesmos usam, a tentativa de destruir todo o arcabouço, a estrutura, a organização, a forma de produção cinematográfica e cultural, não vai dar o resultado que eles pretendem. Eu digo que a produção cultural é como água ela vai penetrando pelos vãos, pelos orifícios e vai permeando tudo. Você não destrói. Com quanto mais violência se ataca a produção cultural mais ela vai permeando. É uma espécie de água mole em pedra dura tanto bate que até fura. Pode fazer o que for, eles não vão conseguir destruir a nossa cultura. Vão prejudicar muito, atrasar muita coisa. Eventualmente pessoas como eu podem deixar de produzir por um tempo, mas logo o trabalho será retomado e novos profissionais também virão. E mesmo esses desafios tecnológicos, essas perversões, distorções que o chamado novo normal traz, sempre vai-se  encontrar uma forma de lidar com isso fazendo com que a humanidade prevaleça, mesmo lutando contra as adversidades e o autoritarismo.

JundiAqui – acho que você já respondeu minha próxima pergunta, que é como será a cultura daqui para frente com o chamado novo normal.

Machado – Prejuízos há, atrasos, há. Eu não sou nem pouco a favor do cerceamento da liberdade de expressão, mas eu acho que essas pessoas se iludem, elas estão completamente enganadas se acham que vão conseguir parar essa força ancestral que é a produção cultural, que vem de um desejo latente. Como diz o Arnaldo Antunes “a gente não quer só comida, a gente quer diversão e arte”. 

Marcelo Machado na China, em 1988, quando foi recebido pela primeira vez pelo casal Jayme e Angelina na Terra do Sol Nascente.

Fotos: Arquivo pessoal da Família Martins e de Marcelo Machado

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