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Jundiaqui

 Lygia foi para o céu
4 de abril de 2022

Lygia foi para o céu

Por Luiz Haroldo Gomes de Soutello

Neste 3.4.2022, Lygia Fagundes Telles foi para o céu, poucos dias antes de completar 99 anos. Ela esteve em Jundiaí, já faz algum tempo, a convite da Academia Jundiaiense de Letras, fazendo uma palestra no Auditório Elis Regina, no Complexo Argos. Nessa ocasião, pude apenas cumprimentá-la rapidamente, porque a disputa por uma palavrinha com a grande escritora foi acirrada.

A palavrinha veio um pouco mais tarde, em 2010, no auditório da Academia Paulista de Letras, quando o amigo José Renato Nalini me apresentou a ela. E mais uma vez na sala de estar da APL, onde eu estava conversando com Nalini e com Paulo Bonfim. Eu já era então um fã de carteirinha da produção literária de Lygia e, depois desses dois encontros na APL, tornei-me também um fã da pessoa especial que ela foi.

Como uma forma de agrado, escrevi para ela um conto vagamente inspirado em fatos reais, porém deslocados no tempo, para que Lygia fosse protagonista. E inseri no meu texto várias remissões a textos em que ela se autorretrata. Recebi de Lygia um bilhete muito amável, agradecendo essa homenagem brincalhona.

Junto a seguir uma versão resumida dessa “stravaganza” literária.

LYGIA E O MISTÉRIO DA CORUJA

(…) Lygia entrou no saguão da Faculdade de Direito e estacou, surpreendida por uma cena inusitada. A porta que dá acesso ao pátio onde fica o túmulo de Júlio Frank, habitualmente trancada, estava aberta. Na soleira, um bedel aflitíssimo gesticulava para o Diretor e para o Chaveiro da Bucha, que também pareciam agitados. Os professores Reynaldo Porchat e Lino Leme chegaram quase correndo e juntaram-se ao grupo.

Curiosa, Lygia (…) ficou flanando por ali, à espera de que a causa daquele pequeno tumulto se tornasse notícia no pátio principal, onde havia mais alguns estudantes. Não precisou esperar muito. A notícia eletrizou a Velha Academia: haviam roubado uma das quatro corujas de bronze que adornam os cantos da gradinha colocada em torno do túmulo de Júlio Frank.

Na comunidade acadêmica, tanto professores como alunos encararam o fato não como simples furto, mas como um sacrilégio. Chamar a Polícia? Fora de cogitação. (…) A Douta Congregação preferiu conduzir ela própria as investigações e nomeou para isso uma Comissão de Sindicância, presidida pelo jundiaiense Professor Moacyr Lobo da Costa, que não encontrou pista alguma do gatuno, ou gatunos. (,,,). Alunos e ex-alunos colaboraram massiçamente na investigação, sem melhor resultado. O Professor Rubens Gomes de Sousa, sabidamente um consumidor voraz de novelas policialescas, foi lá, com seus óculos de fundo de garrafa, espiou, cheirou, pôs o dedo, coçou o queixo e saiu sem dizer nada.

Naqueles dias, não se falava de outra coisa em São Paulo. Na livraria do Olinto de Moura, ali na Rua de São Bento, Alexandre Correa, José Pedro Galvão de Sousa e Leonardo van Acker discutiam o caso em latim, tomando chá. Goffredo Telles Junior fez um discurso indignado, cujo texto saiu depois nos jornais, com o título de Carta aos Paulistanos, pedindo a devolução daquele patrimônio histórico de valor inestimável. Mas o tempo esquentou mesmo foi quando Miguel Reale e Loureiro Junior acusaram os comunistas. Oswald de Andrade retrucou que aquilo era façanha de gente da casa, e que a casa não era um quartel de comunistas, era um covil de integralistas. Só quem não perdeu a fleuma foi o Professor Tullio Ascarelli, porque era italiano e não se envolvia em política tupiniquim. Mamando no cachimbo em forma de saxofone, Ascarelli encolheu os ombros, com seu muxoxo característico, e sentenciou:

– É divertente.

Lygia sempre foi apaixonada por mistérios. Diz ela que essa paixão vem dos tempos de criança, quando as babás lhe contavam histórias de lobisomem e de mula sem cabeça. Acompanhou com interesse as investigações, os debates e as trocas de desaforo, mas sem tomar parte ativa. Na São Paulo daqueles anos quarenta, essas coisas eram só para homens. Para ela, mulher, restava manter-se informada e usar as células cinzentas. Por isso mesmo, foi talvez a única pessoa que não descartou como apenas desaforo a afirmação de Oswald de Andrade no sentido de que aquilo era coisa de gente da casa. Oswald podia ter muitos defeitos, mas não era burro. A hipótese merecia ser considerada. Também foi ela a única pessoa que prestou atenção no comentário do Ascarelli: havia, não na subtração da coruja, mas no que aconteceu depois, um inegável potencial humorístico. Será que aquilo era uma pilhéria de estudante de direito? Mas qual o sentido da pilhéria, supondo-se que fosse uma? Provocar mais um confronto entre comunistas e integralistas, e ficar assistindo o circo pegar fogo?

Lygia ruminou essa possibilidade. Trocou ideias com o pai, que havia sido delegado de polícia antes de se tornar promotor. Trocou ideias com Alfredo de Mesquita, comendo broinhas de fubá e tomando chocolate quente na sala dos fundos da Livraria Jaraguá, lá na Rua Marconi. Trocou ideias com Mário de Andrade, tomando chá na Confeitaria Vienense, ao som de violinos. Trocou ideias com as estrelas e com o travesseiro. E acabou formando a convicção de que o mistério da coruja desaparecida havia pelo menos começado como uma pilhéria de estudante (…).

Lygia tinha razão. Bastou a Comissão de Sindicância dar por oficialmente encerrados os seus trabalhos infrutíferos e a coruja reapareceu, no lugar de sempre.

Quem foi? O mistério persiste.

A foto foi feita por José Renato Nalini

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