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Jundiaqui

 Senhora do semáforo
10 de dezembro de 2019

Senhora do semáforo

Onde estaria a mulher daquela esquina? Foi achar as partes perdidas da sua alma?, questiona Cláudia Bergamasco

Todo santo dia aquela senhora estava lá, no semáforo da esquina de uma avenida e uma rua movimentada, um grande banco de um lado e uma farmácia do outro. Podia chover, fazer frio, muito calor, a senhora estava lá, com seu vestido ou sua saia surrada de sempre, chinelo de dedo nos pés e semblante desalentado. Barriga proeminente, pele rebordada pelo tempo, seca, escura e manchada pelo sol. Cabelos ralos, com um pouco de cor ainda, sempre em coque. Não carregava nada, nem sacola nem bolsa. Sentava-se na mureta de pedras que separa as mãos da rua, uma indo outra vindo, fitava a calçadinha. Quando o sinal fechava, ela olhava para a sempre interminável fila de carros, andava um pouco até chegar ao primeiro esperando receber um trocado, um sorriso, um bom dia, um olhar, até abrir o sinal e os motoristas sempre inquietos, apressados, sumirem dali.

Com voz baixa e suave, um tanto rouca e coalhada de autopiedade, assim como seus olhos, pedia um trocado pelo amor de Deus, pode ser uma moedinha.

Alguns davam uns poucos vinténs, mas a maioria a ignorava. A indiferença era predominante naquele lugar. E a indiferença é uma das piores características do ser humano. Não há quem não sinta ou quem nunca tenha sido vítima dessa senhora chamada indiferença que destrói corações e alimenta sentimentos de rebaixamento como ser humano. Indiferença é ignorar, é ressaltar que não se quer nada com aquela pessoa, que não a incomode, é remoer remorsos solitariamente porque, talvez, só talvez, você não quisesse ser tão odioso a ponto de ignorar, ser totalmente indiferente àquela pessoa.

Semáforo aberto, luz verde para buzinas, arrancadas, pneus a cantar no asfalto quente ou molhado desses dias de pré-verão. A senhora se recolhe e volta a sentar na mureta olhando para baixo, para o nada; e assim passava seus dias – desde manhãzinha, com o dia ainda por raiar, até a noite cair. Às vezes ela vestia uma roupa melhor, uma blusa de linha ou tricô, talvez feita por ela ou doada por algum desconhecido. Uma saia de um tecido mais digno, menos esmaecido e usado, mas sempre no mesmo comprimento, cobrindo os joelhos. Nos pés, a mesma velha sandália de dedos, gasta e desbotada.

Talvez ela estivesse presa naquele semblante vitimado por força da “profissão”, talvez o tempo, as curvas da vida, tenham estampado nela aquela feição. Ou talvez ela desejasse ter esse semblante marcado pela dor para, assim, fazer os motoristas lhe sentirem dó e ganhar uns trocados. Não se sabe.

A história que corre é que a senhora do semáforo teria um marido inválido e ela passara a pedir nas ruas para comprar o pão do dia. Que ela mesma teria problemas de saúde e não teria como trabalhar em outra coisa. Mas, penso eu, ela poderia ser uma doméstica, uma faxineira, lavar e passar e roupas, uma cuidadora, sei lá, algo assim. Mas ela tomou a esquina movimentada e poluída do banco e da farmácia para si. Como se ali fosse o ponto dela e que ninguém se atrevesse a tomá-lo.

Um dia essa mulher desapareceu. Passo por essa esquina todos os dias e não a vi mais. Senti falta. Ela era como um monumento naquela esquina. E um monumento a gente não destrói, a gente entende que ele sempre estará no mesmo lugar sempre. Mas, sabe-se lá qual o seu destino. Para onde ela foi? Ou foram com ela? Ou ela simplesmente foi-se. Teria ido a outra esquina? Teria desistido da “profissão”? Teria ela ter de ficar em casa porque seu marido, quiçá, teria piorado? Teria ficado doente? Teria morrido, nos deixado assim sem aviso prévio? Ou, talvez, teria ficado de saco cheio e chutado o balde. Pedir nas ruas! Ajudar o marido? O escambau! Foi viver com outro homem, em outra casa, talvez em outra cidade.

Afinal, que fim levou a senhora do semáforo? Questiono ainda se ela teria ido achar as partes perdidas da sua alma, recuperar a sua dignidade. Teria se cansado de ser uma mulher oprimida, reprimida, calada, subjugada, desprezada. Teria dado um basta ao pouco caso dos motoristas (ela era para muitos, apenas “parte da paisagem” e não um ser humano).

Que fim levou a senhora do semáforo, me pergunto todas as noites ao ir dormir.

Um dia tive um insight: ela foi dormir. Quem pode saber?

Cláudia Bergamasco é jornalista e escritora

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