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Jundiaqui

19 de setembro de 2021

Panela de avó

Como um objeto aparentemente insignificante, mas que é fundamental na cozinha, guarda tanta memória?

Cláudia Bergamasco

Quando, no início da década de 1980, eu me mudei de Jundiaí para São Paulo para fazer faculdade, fui morar num pensionato. Um ano e uma baita discussão com a senhoria (que Deus a tenha) a respeito do reajuste dos valores cobrados do aluguel, decorrente de mais um dos muitos planos econômicos arquitetados à época para conter a Fórmula 1 da inflação, eu reivindiquei meus diretos. Ela não só não aceitou (e nem me deu ouvidos) como jogou o preço muito acima das contas que eu já tinha feito segundo as novas regras do governo. Resumo: a dona do pensionato só para moças (de fino trato e outras nem tanto) me “despejou”.

Não adiantava argumentar que as contas dela estavam erradas, então peguei minha malinha de volta para casa. Não passou uma semana eu já estava novamente instalada na capital. Desta vez numa quitinete na esquina da avenida São Luís com a rua da Consolação. Dividia tudo com uma amiga querida com quem tenho contato com toda a família até hoje. “Herdei” o apê alugado quando ela saiu do Brasil para viver e estudar em terras estrangeiras longínquas. Nunca mais voltou, exceto para visitas esporádicas.

Enquanto estivemos juntas, um ano e pouco, tivemos que nos virar. Não tínhamos nada de móveis, louças etc. Dependíamos de doações e compras baratas, de segunda mão ou adquiriras em lojas populares.

Independentemente de onde vieram os móveis e as tralhas todas, e em que estado elas estavam, foi incrível montar nosso canto. Eu estudava, ela trabalhava é só nos víamos à noite. Comer era uma saga. O dinheiro para víveres era parco, principalmente para os saudáveis, mas fazíamos as nossas mágicas. Ganhamos muita coisa. Uma delas foi da minha avó materna: uma panela de alumínio, com tampa que já não encaixava e que tenho até hoje.

Ela já era bem usada quando eu a ganhei, mas era a única que tínhamos – anos depois eu consegui comprar outras novas, mas essa panela da minha avó foi marcante. Se nós fizéssemos arroz, por exemplo, era preciso passar o conteúdo para outro recipiente, geralmente de plástico, para poder fazer outro prato e assim por diante. Fritar um ovo? Panela da avó. Legumes? Macarrão? Molho? Sempre na panela da avó.

Tínhamos, no total, uma panela, dois pratos rasos, dois pares de talheres que eram chineses originais (ainda duas facas completamente cegas), uma caneca, uma xícara e dois sofás cobertos com tecido estampado azul e branco horroroso e que virava cama, Mas a madeira do meio pegava nas nossas costas. Então, dormíamos espremidas em uma só parte do sofá, que também era curto e não cobria nossos pés. Só tínhamos isso, se muito.

A tal panela, de alumínio simples com cabo de baquelita; ou seja, não podia ir ao forno (o fogão ganhei da minha mãe) nos acompanhou pelo tempo em que dividimos a quitinete e, depois que minha amiga foi-se do Brasil. Sozinha no apê me tornei dona da panela totalmente.

Por anos a fio só ela fritava, esquentava, cozinhava, fervia, borbulhava de tudo um pouco. Eu trabalhava e estudava muito, almoçava fora, e nunca me importei em comprar outras. Levei um tempo para ter uma leiteira barata, que servia mais para esquentar água do que leite.

O tempo passou, eu me formei, cresci na carreira como jornalista e a panela da minha avó continuava entre os meus utensílios de cozinha. Alumínio de feira, mas forte como inox e, como disse, já muito usada por minha avó antes de ela me dar de presente, não sem um quê de ciúmes.

Pois bem. A vida mudou de novo. Eu voltei à terrinha natal, construí minha casa, comprei tudo do bom e do melhor (mesmo não cozinhando eu adoro apetrechos de cozinha – muitos dos quais tenho e nunca uso). Mas eu, mesmo sendo um fracasso, para não dizer uma anta na pilotagem do forno e do fogão, eu mesma preparo minhas refeições. Não sai uma maravilha, lógico, mas, às vezes, resulta em pratos surpreendentemente deliciosos. Já consegui até fazer pão e ficou divino. No entanto, na maioria das vezes o resultado é tão pífio que não demora a ir para o lixo. Muitas receitas foram feitas na velha panela de alumínio de feira da minha avó. Sem tampa, meio amassada, meio amarelada por dentro.

Ainda em São Paulo, onde vivi por 30 anos, comprei um conjunto de panelas de aço inox lindo de dar inveja. Também comprei um produto pastoso próprio para limpar aço inox, ainda que essas novas e incríveis panelas fossem (e ainda são) pouco usadas, porque as queria (e ainda quero) sempre lustrosas, perfeitas, com cara de acabadas de sair da loja. No entanto, a de uso diário foi quase sempre a panela velha da minha avó.

A dita cuja aguentou de tudo: água que ferveu até secar e escurecer o alumínio, comida queimada a perder as contas (tenho o péssimo hábito de botar a panela no fogo ou deixar o forno ligado e ir para o computador). Cheiro de queimado e comidas intragáveis são comuns aqui em casa. À parte esse detalhe gastronômico deselegante da minha personalidade (não vou fazer mea culpa sobre as minhas desventuras na cozinha), eu sempre dava um jeito de recuperar a panela da avó. Bombril (que me dá asco e arrepios pelo corpo todo), produtos específicos para limpar alumínio, reduzir o queimado botando a panela no fogo de novo, molho com sabão em pó (não me julgue ou critique!), bicarbonato com sapólio…

Até que dia a panela, que já contava uns 50 ou mais anos de uso, arriou, pediu arrego, furou. O cabo queimou, o parafuso que o segurava espanou e não havia jeito de mantê-la entre os meus queridíssimos e impecáveis utensílios de cozinha.

Senti muito, porque naquela panela velha eu tinha feito muitos pratos não só para mim e minha amiga em tempos de estudante, mas também para um bando de amigos. A jornalistada toda, os amigos de sempre, os novos. Na verdade, doeu no coração, porque tive que tirar do pedestal pelo menos uma das minhas divinas panelas novas, entre elas uma Le Creuset laranja avermelhada que eu ganhei de um amigo.

Minha avó, cozinheira de mão cheia, assim como minha mãe (eu saí bem torta nesse quesito), fazia doces e salgados excepcionais. Lembro-me de muitos. Macarrões de mil formas e pelo menos três doces que sinto desejos ainda hoje: pamonha, curau e bolinho de chuva, sem contar o melhor bolo de fubá do mundo – minha mãe aprendeu tão bem a fazer esse bolo que, para mim, tirou o posto da minha avó. Macio, cremoso, cheio de erva-doce. Hummm, água na boca.

Minha avó cresceu na roça, aprendeu a cozinhar muito cedo e em fogão à lenha. Não demorou a fazer de tudo um pouco e tornar-se expert em quase tudo da cozinha doce e da salgada. Hoje, seria uma chef das mais respeitadas – especialmente, é claro, no seio da nossa família. Este mês, faz oito anos que ela está em outro plano.

Sem recursos, como a maioria da nossa família, ela me deu seu bem mais querido: a panela usada e meio amassadinha de alumínio comprada lá pelos anos 1960, talvez, quando ela se casou de novo. A única coisa que ainda tenho dela é esta panela. Uma herança.

Não a joguei no lixo. Ao contrário. Dei novo uso. Tirei o cabo de baquelita queimado e fiz um vaso para minhas inúmeras plantas. Sem pintar nem decorar a panela. Furada, torta, queimada, amarelada, já sem brilho e manchada. E lá está ela no meu jardim, como lembrança de tudo que vivi em São Paulo e na minha atual casa, dando um ar caipira, sustentável e sui generis ao meu amplo e amado jardim. Não pensei nisso, mas foi uma forma da minha avó continuar na minha vida, com seu presente possível, mas do fundo do seu coração para a segunda das suas netas.

Agora, não mais faz comida, não infusiona nada. Serve de recipiente para um tipo de suculenta que eu plantei e que, diga-se de passagem, está linda como era minha avó.

Uma singela panela. Quanta história esse objeto aparentemente tão insignificante guarda.

Claudia Bergamasco é jornalista e escritora

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