LOADING...

Jundiaqui

21 de agosto de 2018

Juliana Galdino dá vida nos palcos a “Frankenstein” de Sérgio Roveri

Ela começou no teatro em Jundiaí, onde o dramaturgo nasceu. Agora estão juntos em São Paulo

Um jundiaense de nascimento e outra de adoção estão juntos em “Frankenstein”, monólogo que estreia dia 6 de setembro na Capital.

Ele é o dramaturgo premiado Sérgio Roveri e ela a atriz premiadíssima Juliana Galdino. Juntos levam ao palco uma história de 200 anos e que é recontada agora com pedaços de vítimas da Guerra da Síria. Frankenstein  faz uma viagem de barco atrás de um médico, uma história que faz alusão à crise dos refugiados na Europa.

A foto acima é a primeira divulgada do visual de Juliana, que já fez o papel de Eulálio na peça de Chico Buarque “Leite Derramado” – que tinha o também jundiaiense José Renato Forner – e que ganhou destaque nacional como um macaco em  “Comunicação a uma Academia”. Ela também esteve na TV até semanas atrás, como delegada na minissérie “Onde Nascem os Fortes”.

Sérgio Roveri é jornalista de formação e passou a se dedicar à dramaturgia nos últimos anos, emplacando diversos trabalhos em diferentes palcos do Brasil. Semana passada saiu aqui no JundiAqui por conta da estreia da peça de sua autoria sobre o maestro João Carlos Martins – leia.

“Não é todo dia que a gente acorda sendo citado pela Juliana Galdino. Fiquei imensamente feliz porque não é apenas de mim que ela fala. Ao falar de um personagem, no caso um Frankenstein moderno, que corre o mundo em busca de um pai, de amor, de reconhecimento e respeito, Juliana está falando de todos nós. E na voz dela isso fica lindo”, escreveu Roveri em seu Facebook. Foi uma resposta a uma postagem de Juliana…

“Frankenstein não está de patins!

Estou ensaiando um monológo escrito pelo Sérgio Roveri, com direção de Roberto Alvim, sobre o Frankenstein… Tenho o dever moral de tornar pública a minha admiração renovada por esse autor. Enquanto muitos optariam por uma roupagem pessoal e fetichista acerca do mito, Sergio se coloca ao lado de Mary Shelley e avança a partir do que ela nos deixou.

E avança vertiginosa e responsavelmente. Isso só é possível quando se tem muita intimidade. Com a obra? Não. Com a vida. Com as tragédias cotidianas que atravessam, e nesse caso, atravessaram 200 anos para, mais uma vez, nos lembrar que, essencial mesmo, só o outro.

É o outro que nos garante algum sentido nisso tudo. É o outro que cria em nós o desejo de ser quem somos. E de ir além do que somos. E de não sermos, também, para que o outro seja/esteja em nós… Como um monstro que só ganha vida por ter sido criado a partir dos pedaços de outros seres humanos. Somos muitos.

Sérgio Roveri tem tanto amor nas palavras que sua escrita é quase voz desenhada. Você ouve em vez de ler. Você sente em vez de procurar entender… Isso acontece quando a humanidade não está fora, mas dentro de nós. O nome disso é empatia.

A história de cada ser humano é digna e merece todo respeito, mas diante de biografias extraordinárias, podemos por vezes nos calar e aprender alguma coisa. Amor e admiração surgem fora de nós. São como flechas que nos atingem. Não somos nós, os arqueiros. A dignificação que ele dá aos personagens, só revela sua grandeza e seu profundo amor pela vida. Bravo!”

Aqui, um trecho de peça que adapta obra clássica de Mary Shelley e que foi publicado originalmente pelo jornal “Folha de São Paulo”:

Primeira parte “A Criação”

1.

Eu fiquei pronto numa madrugada de novembro e o meu despertar foi o prenúncio do que o destino me reservava. Não sinto inveja do resto da humanidade, a não ser pelo fato de não ter vindo ao mundo como todos os outros homens. Enquanto todos nasceram, e nasceram de alguém, eu terei de aceitar, até o fim dos meus dias, o fato de que apenas fiquei pronto —e mesmo nesta afirmação repousa uma mentira, pois me vejo como uma obra inacabada, alguém que foi obrigado a despertar em algum ponto indeterminado entre um aborto e uma gestação bem sucedida.

Sou aquele que não deveria ter visto a luz, aquele que mãe alguma desejaria acalentar, aquele que jamais fará falta a quem quer que seja e por isso mesmo condenado a um tipo muito particular de solidão. Aquele que carrega no corpo, no lugar das marcas de vacinas e cicatrizes herdadas de brincadeiras infantis, o mapa do horror desenhado por um pai incapaz de permanecer ao meu lado na madrugada em que fiquei pronto —e, por isso mesmo, dediquei minha vida a buscá-lo.

Nas minhas noites de solidão, e todas que eu conheci foram de algum modo solitárias, eu imaginava se a semente da rejeição já havia sido plantada no coração do meu pai desde o princípio, desde o dia em que ele manejou a primeira das partes que mais tarde formariam meu corpo, ou se a tal semente floresceu apenas nos momentos finais quando ele, dividido entre a repulsa e o arrependimento, decidiu dar as costas à estranheza daquela vida que ele fizera brotar do horror.

2.

O hospital em que eu fui planejado ficava a cerca de dez quilômetros do centro de Aleppo, e esta distância foi o principal motivo de ele ter sido poupado dos primeiros bombardeios de uma guerra até onde eu soube travada entre irmãos. Conheci pouco do hospital, ou do que restou dele. A maternidade e o berçário se localizavam no primeiro andar, o único em todo o prédio em que as paredes eram coloridas. Mas eu, obviamente, não nasci ali. Eu fui criado em uma pequena sala no subsolo, no meio do caminho entre um elevador de serviço e o necrotério. Nascer ali, independentemente de qualquer expectativa, por si só já se revelava uma condenação ao infortúnio.

Eu despertei sobre uma maca pequena demais para o meu tamanho: meus pés e quase um palmo das minhas canelas estavam de fora. A primeira lição que aprendi: eu fui gerado no desconforto. Ainda agora procuro entender os motivos que levaram meu criador a me projetar com uma estatura inconvenientemente maior do que a da maioria dos mortais —talvez ele tenha se deixado levar por um desejo exibicionista de distribuir o horror por centímetros extras justamente por saber que o escolhido para arrastá-los pelo mundo seria eu.

Quando abri os olhos pela primeira vez, apavorado diante dos bombardeios daquela madrugada, minhas mãos instintivamente agarraram-se à superfície fria da maca e, assim, a primeira textura que meus dedos sentiram foi a das manchas de sangue ressequido que, notei logo em seguida, espalhavam-se também pelo chão. A ideia de que aquele sangue pudesse ser meu me provocou calafrios. A ideia de que talvez não fosse provocou calafrios ainda maiores. (…)

Meu corpo estava nu e, à primeira vista, minhas pernas não pareciam ser exatamente da mesma cor, ou sequer do mesmo tamanho. E meus braços e coxas, também à primeira vista, não pareciam ter o mesmo diâmetro. Culpa desses olhos, eu pensei, que depois de tanto tempo ofendidos pelo pó na certa tinham perdido a precisão. Mas este consolo durou pouco. Se havia um culpado por tamanha falta de simetria, com certeza não eram os olhos. (…)

Segunda parte “O Encontro”

1.

Não foi uma viagem curta. Muito menos fácil. E ainda menos solitária. Antes de chegar à estrada principal, já era possível avistar uma romaria silenciosa que avançava naquele vagar típico de quem não tem rumo e tampouco certezas. Um grupo de crianças seguia à frente, e o semblante sério e cansado dos adultos era sinal de que eles já deviam estar andando havia várias horas. Depois que me juntei ao grupo, soube que na verdade a caminhada entrava no terceiro dia. Um homem, cuja barba tinha a mesma cor do pó da estrada, me encarou e perguntou se a Síria havia me feito algum mal. Eu respondi que talvez não tivesse sido exatamente a Síria. “É o caso de quase todos aqui”, ele disse. “Mal ela não fez, ela só não nos quer mais”.

Eu examinava meu corpo e estranhava a indiferença de todos diante das minhas partes estranhamente encaixadas. Ainda que tivessem assuntos muito mais sérios com os quais se preocupar, era impossível que eles não notassem este par de mãos em que os dedos da esquerda eram flagrantemente maiores e mais escuros que os da direita. Ou que não se assustassem, nos momentos em que eu levava a mão ao pescoço para limpar o suor, com o traçado grotesco da cicatriz que indicava o local em que minha cabeça havia sido costurada ao tronco. Ou que não tenham jamais perguntado, ao longo de semanas de caminhada, se eu não sentia dores escorchantes ao cruzar o deserto equilibrado sobre duas pernas de comprimentos diferentes. Mas eu não sentia dor alguma. O meu projeto de corpo, que reunia todas as condições para dar errado, diante dos desafios e das provações revelava-se surpreendentemente funcional.

Em mais uma daquelas manhãs abafadas, ouvi um velho anunciar que a fronteira se encontrava logo depois de umas colinas que já era possível avistar. Um dos jovens do grupo, atiçado por um ânimo que já havia abandonado quase todos os demais, saiu em disparada pelo caminho, gritando que seria o primeiro a cruzar a fronteira. Ele tinha dado pouco mais de dez passos quando se ouviu o estrondo que o projetou quase dois metros acima do solo, separando na queda a perna direita do resto do corpo. “Voltem, é terreno minado”, alguém gritou.

Fui o único a desobedecer. Enquanto todos retrocediam apavorados, aproximei-me do jovem, arrastei seu corpo até a beira do atalho e, por algum impulso que até hoje não compreendo bem, deixei sua perna onde ela havia caído, a pelo menos três metros de distância do resto do corpo. Diante do jovem dilacerado, tão sujo de sangue e poeira como eu me encontrava no dia em que acordei para a vida, eu compreendi pela primeira vez o meu lugar no mundo. Eu havia encontrado um semelhante. Finalmente eu era parte da humanidade. Segui sozinho pelo atalho e fui eu, e não o jovem despedaçado, o primeiro a cruzar a fronteira e avistar o mar. A sorte às vezes sorri de um jeito cruel.

2.

Se por um único instante tivesse imaginado a capacidade do mar de se mostrar hostil, talvez aquele homem que ansiava tanto pelo momento da travessia tivesse se deixado morrer em paz nas areias do deserto. Porque paz não há na morte no mar… por que morrer à noite no mar… por que ouvir os gritos no escuro do mar… Não é pelas dimensões da brutalidade que o momento da morte no mar é indescritível. A morte no mar, a morte na noite do mar, é indescritível pela mais prosaica das razões: simplesmente não se descreve aquilo que não se enxerga. De tudo que se pode dizer sobre a morte no mar, sobre a morte na noite do mar, eu digo apenas que a morte no mar é invisível.

Nenhum de nós, dos que estavam no bote e sobreviveram àquela noite, jamais será capaz de evocar a tragédia com as cores que ela exige, pois foi somente nos nossos ouvidos que ela se deu. Até o fim dos nossos dias, e se este for o nosso desejo, poderemos dizer apenas que naquela noite ouvimos gritos. Nenhum de nós terá um rosto para humanizar nosso provável relato.

Quando o dia amanheceu, o bote que partira cheio na noite anterior não passava de um ponto perdido no infinito das águas, um ponto pegajoso e alaranjado ao qual se agarravam umas poucas criaturas assustadas diante dos espaços vazios que agora sobravam por todo lado. Até poucas horas havia alguém aqui, e ali também, aqueles rostos pareciam dizer. Até poucas horas mal se conseguia esticar as pernas e agora, agora vejam, já se pode praticamente viajar deitado, já se pode desfrutar da hospitalidade dos mortos que, entre gritos e braçadas inúteis, nos cederam os seus lugares. Não é nos corpos que por ventura venham a boiar que se revela a morte no mar. A morte no mar se revelava nos lugares então vazios de um bote à procura de rumo.

As pessoas do bote —e é desta forma que eu sempre irei me referir a elas, pessoas— estavam caladas, e permaneceram assim quando a primeira ponta de terra se revelou no horizonte. O condutor do bote, cuja voz até aquele momento ainda não se ouvira, esperou a saída do último viajante para finalmente dizer: a partir de agora, é por conta e risco de vocês.

Voltei-me para ele e perguntei: para que lado fica Viena? Ele parece ter estranhado a pergunta e ficou em silêncio. Para que lado fica Viena?, eu repeti. “Que raios você pretende fazer lá”?, ele respondeu. “Não tem lugar para você em Viena”. Mas para que lado fica?, eu insisti. Ele apontou o dedo para frente e respondeu: para lá. Depois, apontou o mesmo dedo para o lado direito e disse: para lá. E repetiu o gesto para o lado esquerdo: ou para lá. “Que diferença faz saber onde fica?”, ele disse. “Viena não é para você, não é para nenhum de vocês”. (…)

Se liga – O monólogo estreia no Centro Cultural do Banco do Brasil, em São Paulo, no dia 6/9, com direção de Roberto Alvim.

Fotos: reprodução Facebook

Prev Post

Nova Coca-Cola sabor café é…

Next Post

Ex-parceiros de Renato Russo trazem…

post-bars

Leave a Comment