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Jundiaqui

14 de agosto de 2017

Leoa enjaulada

O coração explodia no peito daquela menina que queria mudar de vida, mostra Cláudia Bergamasco

A menina acordou espevitada, desconcertada, angustiada. Uma vontade de mudar tudo. De vida, de casa, de cabelo. Mudar os móveis de lugar, pintar as paredes, trocar suas roupas, comprar outras, ficar pelada. Uma vontade de ter uma dúzia de filhos e de não ter nenhum. De virar tudo do avesso, de ver o mundo de forma diferente daquela que ela via naqueles últimos anos. Essa menina queria viajar por esse mundão, conhecer outras terras, ficar por lá se assim lhe desse na telha. Queria alongar bastante seu tempo de vida, ou, ao contrário, encurtar o quanto fosse possível.

Ela, Maria de Ninguém, tinha uma inquietação constante. Queria ser outra mulher, ter outra vida. Queria, enfim, nascer de novo e fazer tudo de novo de um jeito novo, diferente, melhor, menos infantil, menos ingênuo, mais safado. Aliás, ela estava a fim de fazer safadezas que há muito, muito tempo ela não fazia. Queria sair por aí, encontrar um homem bonito e lhe tascar um beijaço na boca, falar coisas impublicáveis em seu ouvido, deixá-lo molhado e intumescido e depois ir embora, olhando para trás com olhos de leoa no cio e ao mesmo tempo com ar de santa, de quem não-tem-nada-a-ver-com-isso.

O coração lhe explodia no peito. Nada estava bom. Naquela manhã, andava de um lado ao outro da sua casa sem saber exatamente o que fazer. Saiu e aquele nervoso lhe acompanhava. No fundo, ou melhor, na superfície, tudo aquilo era uma montanha de sentimentos reprimidos. Ela sentia-se reprimida, encarcerada. Leoa enjaulada. Queria quebrar aquelas traves, aquele vidro, aquela bolha, aquela coisa inexplicável que lhe tolhia os atos, que lhe suprimia a vida pelas bordas um pouquinho a cada dia, todos os dias da sua vida. Ela via seu corpo sangrar e não sabia o que fazer para a tal da repressão parar de comer-lhe as carnes, a alma, a aura, sua cor, seu sorriso, seus rugidos, suas vontades e desejos latentes. Já há algum tempo, todo dia era a mesma coisa.

A menina tinha passado para a idade adulta e aquela coisa, aqueles sentimentos adolescentes não lhe desgrudavam da pele, da mente. Sentia-se paralisada. Escrevia e desenhava. Escrevia horas sem fim. Não tinha pé nem cabeça aquele monte de letras e linhas. Ou tinha? Tanto a fazer, tanto a ser feito e ela apática. Apoplética, em verdade, com seu estado físico, mental, espiritual e psíquico. Parecia que alguém ou alguma coisa havia lhe arrancado parte do cérebro, que não mais pensava direito porque lhe faltava massa encefálica.

Sentia-se sem chão, sem eira nem beira, sem companhia, sem acompanhante, sem quem lhe desse a mão para sair daquela areia movediça que lhe consumia as entranhas. Todo dia um pouquinho. Tragada pelas pessoas que fingiam não reparar nela. Só fingiam, porque ela sabia que provocava inveja. Fosse o que fosse como mulher, fizesse o que fizesse, a inveja alheia lhe abria seus grandes olhos e provocava o pior dos pecados: o desdém, o ato de ignorar tudo o que vinha dela. Com isso aprendeu a lutar. Mas aprendeu também que nem tudo ou todos valem a sua luta.

Insuportável, às vezes; suportável, às vezes. No mais das vezes, angustiante. Tomava uma pílula para sentir-se melhor, uma vitamina, um antibiótico, uma taça de vinho até a boca, comia um doce. Trancava-se no quarto escuro ouvindo sua respiração, ouvindo o que seu coração lhe falava. E como esse coração falava, Deus meu, como ele falava! No entanto, a porcaria da angústia, do sentimento de mudar de vida continuava ali com ela. Como se fosse um encosto. Ela se debatia consigo mesma, se machucava, chorava, machucava seu coração, queria pular fora, chutar o balde, ser salva daquele afogamento, mas só encontrava quem lhe desse o abraço dos afogados. Seu aprendizado de lutar pela vida se esvaia. A menina que chorava queria sorrir para o mundo e seu recado de socorro não tinha eco.

Era linda, inteligente, articulada, criativa, desenvolta. Era. Agora, ela achava que não era nada disso. Era simplesmente um potencial que não deu certo. Uma estranha em sua própria casa, em seu próprio corpo. Tinha ganas de satisfazer-se, mas não conseguia. Tinha com ela os tentáculos poderosos da repressão, da dor na alma e da alma. Os olhos, que outrora foram grandes e brilhantes, eram agora duas bolinhas apagadas e apequenadas pelas pálpebras pegas precocemente pela gravidade.

Era moça, mas vivia como uma velha. Seus lençóis se sujavam de suor frio e lágrimas em vez de suor quente e gozo. Não saia de casa, não aceitava os raros convites. Mas queria sair de casa, aceitar convites, ser chamada para ir a lugares, ser mais safada. Maria de Ninguém queria, sim, que fizessem carinhos e safadezas sexuais com ela. Sonhava com isso às vezes, mas não se permitia. Tentava. Não conseguia.

As pessoas diziam que ela era muito nova, muito linda e muito inteligente para se afogar nesse estado de espírito deprimente, viver tão sozinha, ser tão solitária. Calada, ela concordava e dizia para si mesmo que aquilo tudo era verdade. Que devia sair por aí e beijar aquele cara bonito e bacana da portaria do prédio de um conhecido. Ele lhe dera bola. Ela não. Ela não dava bola nem trela para ninguém. Fechou-se em si mesmo. Sentia que se ficasse sozinha na companhia dos seus sonhos seria mais feliz do que se ficasse ao lado de alguém de carne e osso que ia lhe aporrinhar a vida, deixar-lhe apoquentada com assuntos e atitudes que não condiziam com ela. Mentira. Ela desejava dividir a vida com quem lhe fosse aprazível, com quem a merecesse. A vida, no entanto, não lhe dava oportunidades. Ou seria ela mesmo que não se abria às oportunidades? Ambas as situações eram verdadeiras.

Essa menina acreditava nas pessoas por princípio. Por alguma razão, no entanto, as pessoas, quase todas, a decepcionavam aqui e ali; ali e aqui. Por isso, perdera a esperança nas pessoas, especialmente em algumas, aquelas que lhe eram mais caras e que lhes viraram a cara com uma desculpa esfarrapada quando ela mais precisou. Cada vez mais desacreditava no ser humano. Cada vez mais acreditava no jargão daquele personagem de uma série de tevê: “everybody lies” (todos mentem ou todo mundo mente). Até ela. Será?

O tempo encurta todos os dias, ou seria impressão daquela menina que já estava se tornando uma senhora num corpo de menina? Queria viver até a última gota, mas, parecia-lhe, não lhe restava gota alguma. Era melhor que o dia acabasse logo para ela voltar para cama e acordar de novo. Nova. Sem angústias, sem tesão reprimido, sem deixar-se reprimir por quem quer que fosse. Só não podia deixar para depois, porque o depois podia ser tarde demais.

Pois então. Ela acordou. E tudo continuava igual.

Cláudia Bergamasco é escritora

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