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Jundiaqui

 O diabrete do romantismo alemão
1 de agosto de 2020

O diabrete do romantismo alemão

Por Luiz Haroldo Gomes de Soutello

Na vastíssima obra do compositor alemão Ludwig van Beethoven (1770-1827), a peça mais conhecida e mais executada é com certeza a “Bagatela para piano nº 25 em lá menor”, composta em 1810 e publicada postumamente em 1867. Na partitura original, Beethoven escreveu: “Für Elise am 27 April zu Erinnerung von L. v. Bthvn” (para Elisa em 27 de abril como lembrança de L. v. Bthvn). Por isso a composição ficou conhecida como “Für Elise”. Se você não tem familiaridade com música erudita, eu dou uma dica: uma adaptação muito irritante da melodia de “Für Elise” era tocada pelos caminhões que entregavam bujões de gás a domicílio em Jundiaí e em outros lugares.

Como é natural, muita gente ficou curiosa para saber quem seria a Elise a quem Beethoven dedicou aquela composição. Max Unger e Ludwig Mohl, com o argumento frágil de que a única paixonite conhecida de Beethoven nessa época foi Therese Malfatti, sustentaram a tese de que Elise seria um pseudônimo para encobrir o nome da Malfatti. Essa tese é insustentável, pois não havia qualquer motivo plausível para que Beethoven encobrisse o nome da Malfatti se fosse mesmo ela a musa. O musicólogo Klaus Martin Kopitz, especializado em Beethoven, sustentou que a musa seria a cantora lírica Elisabeth Röckel, amiga do compositor.

Não sou musicólogo, e muito menos um especialista em Beethoven, mas, na minha modestíssima opinião de traça de biblioteca, todos eles estão errados. Parece muito mais provável que a musa tenha sido Bettina Brentano, por extenso Elisabeth Catharina Ludovica Magdalena Brentano (1785-1859), que depois de casada passou a ser a Condessa Elisabeth von Arnim.

Os Brentano eram alemães de origem italiana, por isso ela era conhecida na família como Bettina, diminutivo italiano de Elisabetta, embora o diminutivo alemão de Elisabeth seja Elise. Bettina foi uma criança levada da breca e muito espontânea, que fazia coisas consideradas de maus modos na época, como sentar no chão ou se atirar no colo das pessoas. Por isso, os irmãos puseram nela o apelido de Diabrete (Kobold, em alemão), que ela carregou mesmo depois de adulta.

Após a morte da mãe, Bettina morou algum tempo com a avó, e, entre 1803 e 1806, morou com a irmã mais velha, Kunigunde (“Gunda”) Brentano, casada com o jurista Friedrich Carl von Savigny, já então professor de direito na Universidade de Marburg.

Savigny, que foi descrito pelo cunhado Clemens Brentano como uma máquina de estudar, possuía uma enorme biblioteca. Professor carismático, muito estimado pelos alunos, permitia que os discípulos fossem estudar em sua biblioteca. Um desses rapazes, Jacob Ludwig Grimm, apaixonou-se pela formosa e travessa Bettina, cujo retrato ele desenhou a lápis. O romance não deu em nada, porém mais tarde os irmãos Grimm dedicaram a Bettina uma das edições dos seus famosos contos de fadas.

O Diabrete também flertou com outras figuras destacadas do romantismo alemão. Em 1807, flertou com o poeta Johann Wolfgang Goethe, que pulou fora, porque era casado, mas ficaram amigos e trocaram correspondência até 1811. E em 1810 (prestem atenção na data) ela flertou com o nosso Ludwig van Beethoven, que também pulou fora, mas ficou amigo dela a ponto de aceitar um encontro com Goethe, organizado por Bettina. Essa tentativa dela de aproximar os dois também não deu em nada, ficou naquele primeiro e único encontro.

Em 1810, quando conheceu Beethoven, Bettina Brentano já era a figura feminina mais popular entre os românticos alemães. Músicos de renome, como Robert Schumann e Johannes Brahms, dedicaram composições a ela. Férenc Liszt a admirava. A mim me parece muito provável que até mesmo o mal humorado Beethoven se sentisse atraído pelo considerável poder de sedução do Diabrete e que dedicasse a ela a “Bagatela nº 25”, composta no ano em que se conheceram.

Entre 1805 e 1808, Bettina havia ajudado o irmão Clemens Brentano e um amigo dele, o Conde Joachim von Arnim, ambos poetas de renome, a compilar uma coletânea de poemas populares que publicaram com o título “Des Knaben Wunderhorn”. A tradução mais comum desse título é “a trompa maravilhosa do rapaz”, mas uma tradução mais sofisticada seria “a cornucópia do rapaz”. Alguns desses poemas foram musicados entre 1887 e 1890 pelo compositor Gustav Mahler, em um ciclo de canções com o mesmo título.

A própria Bettina compôs numerosas canções, mas não foi na música que ela se destacou, foi na literatura. É considerada a criadora do gênero literário conhecido como romance epistolar. Houve mesmo quem a descrevesse como um movimento literário de uma pessoa só. Para dar uma pequeníssima amostra, é dela a seguinte frase: “Que realidade existe mais alta do que o sonho?”

Em 1811, Bettina casou com o Conde von Arnim, com o qual teve sete filhos. Deixou então de flertar com os grandes artistas, mas não deixou de ser um Diabrete em outros aspectos. Publicou alguns textos políticos que a teriam levado à prisão se não fosse amiga de muita gente importante, inclusive o Rei da Prússia.

A popularidade de Bettina von Arnim continuou tão grande na Alemanha que, já no século XX, teve o seu retrato estampado em selos de correio e em cédulas de dinheiro.

Luiz Haroldo Gomes de Soutello é escritor e advogado

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