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Jundiaqui

 A invasão dos mestres-cucas
29 de julho de 2018

A invasão dos mestres-cucas

Thaty Marcondes escreve sobre os programas de TV cheios de “descozinheiros”

A TV de hoje em dia, principalmente a cabo, transformou-se numa escola de “descozinheiros”. São 24 horas ininterruptas de receitas, dicas, preparos estrambólicos, nomes estranhos, novos (velhos) ingredientes, e outras estranhezas. As estrelas nacionais e internacionais espalham seu estranho idioma, pouca coisa que um leigo consiga entender ou traduzir.

O endro (primo-irmão das delicadas folhinhas de nossa erva-doce) agora chama-se dill; antes batia-se ovos com um batedor de arame conhecido hoje por fouet; o coador de legumes, escorredor, ou o que a gente use pra coar caldos, chama-se “chinês” ou chinois e tem a forma de um chapéu de burro invertido; a velha tigela hoje em dia chama-se bowl.

As massas de gostosas tortas agora levam denominações como sablé, brisé e sucré – nada de massa podre, de bomba (ou choux: mais chique!); os recheios também mudaram: antigamente bastava misturar algumas gemas, maisena, leite e açúcar; levava-se ao fogo até dar ponto e os cremes e sobremesas ficavam deliciosas, mas atualmente deve-se fazer creme patisserie, anglais ou outros que tais.

Na programação há cozinheiro que frita o alho antes da cebola (a comida amarga), mas ele é bonitão, dá ibope; outro, superconvencido, preocupado com a vaidade, comanda não apenas um, mas dois ou três programas, parecendo um menininho mimado com complexo de Bob Flay (apresentador de cerca de 60% da programação de um canal televisivo a cabo internacional); tem a mocinha que faz biquinho, com linguajar infantil, irritantemente bonitinha; a jovem senhora americana que diz que o feijão utilizado na receita é vegetariano (como assim, existe feijão que come carne?!?); e o que dizer da brasileira com formação no exterior, que soltou em rede nacional que araruta é uma plantinha japonesa, furtando a tradição de nossos índios e matas?

Por vezes, alguns dos chefes apresentadores portam-se de forma indelicada e ininteligível, chegando às raias da necessidade de legenda, quando externam sua opinião.

Em contrapartida, Rita Lobo (merece ser citada!) dá receitas normais, ensina a fazer comidinha caseira, marmitas com reaproveitamento de sobras, entre outros. Ela usa muito o termo “desgourmetizar”, além de (pasmem!) usar nossa boa e prática panela de pressão!

Nos canais abertos, a coisa também pega: o reality show internacional versão tupiniquim em sua última temporada para profissionais levou à final e posterior vitória um cozinheiro que queimou o peru – no bom sentido, a ave mesmo.

Na versão australiana do mesmo programa, há capítulos onde os apresentadores dão receitas completas, com passo a passo, coisa que não acontece por aqui. Já na versão espanhola, os amadores dão um banho na apresentação em cima até dos profissionais brasileiros.

Na verdade, a maioria desses programas tem como função vender ingredientes, panelas, utensílios e chamar o público a gastar seu rico dinheirinho em estabelecimentos parceiros.

Caos culinário instaurado, ninguém se preocupa em ter um programa ensinando valores nutricionais, aconselhando uso e aproveitamento de bons ingredientes, preparos mais saudáveis, como convém à moderna sociedade que, cada vez mais, perde sua saúde em fast-foods e receitas engordatícias.

Lembro que antigamente as moças casadoiras colocavam em suas listas de presentes o outrora famoso “Dona Benta – Comer Bem” – o título remete a Monteiro Lobato, cuja editora publicou a primeira edição em 1940, contendo receitas desenvolvidas e testadas pelas mães e esposas dos editores. O livro tornou-se referência, ficando tão popular que deu nome a vários ingredientes, apesar da grande quituteira do Sítio do Pica-Pau Amarelo ter sido dona Anastácia. Até então, os livros eram de culinária fina, importados ou traduzidos, contendo alguns ingredientes desconhecidos no Brasil.

Fico imaginando minha avó, cuja comida era saborosa, feita em fogão à lenha, na banha fresca de porco, tentando fazer uma dessas receitas. Pensando bem, pra quê, se o gostoso mesmo é um bom arroz e feijão, bem feitos e perfumados!

Thaty Marcondes é escritora e poetisa

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