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Jundiaqui

 Sobre os sons
12 de julho de 2021

Sobre os sons

O que irrita é o que conforta os ouvidos

Cláudia Bergamasco

Certa feita um amigo me perguntou quais os sons que eu mais gosto de ouvir, que me inspiram. É uma pergunta ampla, com inúmeras respostas. Parei com os olhos fixos nos deles e permaneci a pensar no que talvez, para ele, tenha sido uma eternidade.

Segundos depois, respondi: o riso das crianças, porque significa alegria pura e futuro. Ver uma criança dormindo e roncando profundamente, com um gato a seus pés, roncando da mesma forma, porque me transmite tranquilidade e conforto. O som do silêncio, de que tanto necessito. Um silêncio espesso para pensamentos idem. Folhear um livro, tanto faz se for novo ou velho – o conteúdo e seu significado para mim, leitora ávida, é o que importa. Não vivo sem (além do que, seus cheiros são inebriantes)

Encanta-me o espocar de uma rolha de vinho saindo sorridente de uma boa garrafa de tinto; o som do derrame desse líquido viscoso, às vezes rubro como a menstruação, e com gosto de prazeres mil, na taça lisa e translúcida de cristal – como deve ser. Beber um bom tinto depois de ouvir a rolha saindo muito espremida da garrafa com seu som típico é, para mim, orgástico – igual ao som do silêncio. Degustar faz parte de um ritual que do os amantes podem entender – também os de vinho, mas especialmente os de veros amores.

Por falar de amores, lembrei de outro som que me fazia (faz muito tempo que não faz mais) molhar a calcinha: o da chave do homem-amante abrindo a porta de um apartamento em que morei. Antes mesmo de o ver, de nos tocarmos, eu já derretia como um sorvete sob o sol do alto verão no Atlântico Sul. Sentia antecipadamente o beijo ardente que ele ia me dar, as mãos pequenas, gordinhas e bem amestradas na arte do amor e do dar prazer. Ah, o amor. O som do coração engana. Pode bater como se fôssemos morrer no ato ou bater como se fôssemos morrer pela falta desse amor que resolveu ir sem nada deixar além do vazio, dos desejos aniquilados e afogados pelas lágrimas em volume oceânicos do fim.

Sussurros ao pé do ouvido me arrepiam – e eu gosto demais. Imagino uma voz grave, gutural e ao mesmo tempo suave e sensual (ainda sonho com o saudoso ator Sean Connory me dizendo coisas indizíveis aqui e que me fazem derreter e me molhar tanto quanto o sentir da chegada do homem-amante e do sorvete no sol do Atlântico.)

Se o mormaço tivesse som eu também gostaria dele. Por sorte, o vento nos oferece várias insinuações: chuva, alento por um calor enfezado, levar o suor para longe, trazer o aroma das plantas, flores, terra molhada. O vento, dizem, sempre está numa mente buliçosa, assim como a canção que fazem nas águas nas franjas de um rio. Ao contrário das ondas do mar, sempre deliciosas, mas ruidosas e amedrontadoras.

Também gosto muito da voz do meu amor a me chamar de um jeito carinhoso que só os amantes entendem. Pode ser ridículo para quem ouve e não ama, mas soa como uma canção para mim. Mas quando as jugulares se desentendem, o som do perdão, do pedido de desculpas, são bálsamos necessários. Ouvir dizer “eu perdoo você”, “me desculpe”, é tão ou igualmente regenerador quanto dizer “eu amo você.”

Por outro lado, quais sons eu não gosto? Meu amigo não perguntou, mas me sinto impelida a revelar. O da impaciência, os dos mau-humores, os dos desamores, os das maldades, o da tristeza. Esses são sons (sons?) os quais eu nunca gostaria de ouvir. Não são poucas as vezes em que a bondade e a maldade saem para passear de mãos dadas. São como trovoadas, raios, arpões e serpentes que aparecem para machucar e destruir. Hoje, posso dizer, inafortunadamente, que sei bem demais sobre eles.

Abelhas, mosquitos e insetos voadores de qualquer espécie. Não só o enervante zunido que fazem no meu ouvido, mas o tremendo incômodo que me provocam. Detesto. Talvez por isso eu vá pouco à praia. Ou ao campo. Quando chegam, é quase impossível escapar delas. Basta uma pausa, um descanso, para que apareçam, rápidas e incansáveis, esteja você com ou sem repelente. Voejam de um lado para outro, dançam bem à frente dos olhos, do pescoço, nos braços, nas pernas, no seu rosto e até mesmo na boca – beijo irritante e pegajoso como o de um homem (ou de uma mulher) que não se quer mais.

Existem outros sons que me deixam desarvorada, como as conversas que causam repulsa. Não pelo assunto, mas pelo tom. Falar excessivamente e em alto volume é um deles e podem deixar ressentimentos. Aqui entra a categoria dos locutores de futebol (que me perdoem os leitores amantes desse esporte, mas, para mim, a locução de um jogo é insuportável, enervante e me provoca náuseas.)

Falar muito sobre a própria vida, gabar-se de suas conquistas materiais ou não, intrometer-se em segredos pessoais (seus ou de outros, uma grosseria imperdoável); contar histórias longas e sem sentido (confesso que já fiz isso). Os idosos são mais propensos a esses erros de convivência humana, o que é uma das principais razões para que essas companhias sejam muitas vezes evitadas.

Parecer desinteressado é outra coisa que, de forma forçada, mas vou considerar mesmo assim, pode ser considerado um “som” que me é obsceno. Você revela, se abre sobre algo importante e seu interlocutor está em outro mundo. E ainda pergunta “o quê?” quando questionado se está ouvindo. Que raiva que dá!

Também o contradizer ou contestar alguém diretamente, na lata, sem rodeios. Ou ridicularizar ou vituperar contra as coisas – exceto em pequenas doses espirituosas. É como o sal: em alguns casos, um pouco dá prazer, mas, se jogado demais, estraga tudo.

E como meus ouvidos estão cada vez mais apurados (já me chamaram de tísica ou compararam minha audição ao de uma tuberculosa, porque “ouço demais”), sinto que é um sintoma em contraponto à minha perda paulatina da visão. No fundo, acho que essa é uma definição, a de ouvidos tísicos, que beira o exagero.

Por fim, tem aquele que depois de não sei quantos chopes engolidos pantagruelicamente e uma ou mais garrafas de vodka se digna a dirigir o verbo a mim: você não vai falar nada? Não, meu caro, prefiro ficar em silêncio a trocar palavra com gente neste estado.

Cláudia Bergamasco é escritora

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