LOADING...

Jundiaqui

 Memórias Póstumas de Dick Tracy
15 de junho de 2017

Memórias Póstumas de Dick Tracy

Por Lucinha Andrade Gomes

Preliminarmente, quero informar aos leitores e leitoras, que qualquer coincidência com a famosa obra de Machado de Assis, “Memórias Póstumas de Brás Cubas”, repousa na inspiração do tema.

Estou boiando na piscina, meus pulmões estão cheios, já não respiro e o batimento cardíaco cessou. Cometi suicídio, joguei-me na piscina, pois não sei nadar. As causas e as razões, os senhores e senhoras acompanharão oportunamente.

Fui adotado, ainda bebê, por uma família alegre e pequena. Logo de início decifrei a generosidade do gesto, muito comum entre os humanos: eu fui adotado para distrair, acalmar o pré-adolescente da casa, o Luis Claudio.

Ledo engano, em pouco tempo eu, o terapeuta alternativo, juntei-me ao pseudo paciente irrequieto e juntos passamos a formar uma dupla da anarquia. A mãe do Luis, Lucinha, já sem ilusões, verificou que a adoção não trouxera os frutos esperados; agora eram dois agitados, para ela educar.

Muito rápido fiz o diagnóstico da casa: o pai era durão, impunha ordens, a filha gostava de organização, nada da bagunça, o que eu adorava fazer e a mãe era calma, tinha um olhar de compreensão e indicava perdão para as farras. Automaticamente eu a elegi para figurar como a minha dona, a mãe acolhedora.

Sempre tive a personalidade forte, desde a primeira infância. Adorava fugir de casa, às vezes sumia por um ou dois dias e, retornava, cheio de mordidas, carrapatos etc. Mesmo assim, era recebido como um rei, ela ralhava, em tom severo, mas corria me alimentar, afagava e, o pior, o banho! Eu detestava… Nestes momentos quem impunha a ordem era o pai, o Cláudio, pois autoridade ela nunca teve comigo; embora tentasse continuamente. O problema é que ela sempre dizia: “por favor, me dá licença!”, ora isto não funciona com a minha espécie.

Entre as minhas aventuras estavam artes deliciosas: comer todo o salame da família no café da manhã, vomitar na cama de quem me censurasse, dormir sujo na cama do Luís, morder sapatos, mobília da sala, assistir a TV no lugar de honra, somente não dominava o controle. E o lixo? Sempre amei uma lata de lixo, afinal eu sou um poodle com alma de vira-lata.

Dei muito trabalho, mas retribui com o meu carisma. Eu não sou modesto, arrasava na família, claro que o sucesso era restrito, havia oposição; a Marcela passou a me querer, quando eu já estava na maturidade e o Cláudio tornou-se meu enfermeiro predileto, já na velhice.

Uma das diversões preferidas era correr atrás dos carros. Eu era ótimo nesta corrida. Derrubei motos e fui atropelado algumas vezes. A cada acidente a Lucia adoecia, a família ficava abatida, mas assim que me recuperava, voltava ao risco, pois nasci para aventurar perigosamente.

Eu não era simpático para a vizinhança, era aquele tipo que provoca encrenca no entorno. Não poupava nem os amigos das crianças da casa, para as amigas da Marcela eu amava rosnar, causava um pavor divertido. Soube há bem pouco tempo que existe um movimento que quer criar uma página nas redes sociais ‘Eu já fui mordido pelo Dick’. Céus, isto é o que eu chamo de consagração!

Em um dos atropelamentos fui socorrido pela Marcela, Lucinha e o autor do delito, tudo com muito respeito entre as partes. Acreditem que recebi a visita do motorista para saber da minha recuperação. Tudo conforme a Lucinha gosta, resolver de forma civilizada os momentos difíceis, politicamente correta.

A medida em que o tempo passou os adolescentes cresceram e…. mudaram. A casa ficou vazia. Claro que sentia falta dos dois, principalmente do meu companheiro de arte, mas a Lucinha ordenou: ‘Dick a casa está vazia, você terá regalias, use o sofá, abuse da sala, fique à vontade, você recebeu um upgrade.!’ Nossa aquilo era tudo o que eu esperava, o reino aos meus pés. No entanto, como na vida nem tudo se efetiva como o planejado, comecei a envelhecer e a adoecer.

Quando saia à rua, os vizinhos da minha espécie, aproveitaram para vingar a minha transgressão na mocidade; estava velho e tinha apenas a Lucinha e sua bengala para me defender. Confesso que apanhei algumas vezes, sem forças para defender-me.

As pernas estavam fracas, o sofá passou a ser inatingível, as dores reumáticas rondavam o meu dia a dia. O pior foi a perda auditiva e lentamente a visão. Já não espantava mais os passarinhos, às vezes, rosnava para mostrar que não perdera a vitalidade.

Nesta fase, a Lucinha e o Claudio cuidavam atentamente de tudo. Ela, sempre carinhosa, conversávamos muito e quantas vezes eu a consolava. Estava velho e temperamental, não queria mais tomar banho, apenas se fosse buscado pela Marissol. Eu contava com o apoio incondicional da Geni, que me paparicava e aconchegava. O Estatuto do Idoso vigorava na casa!

Hoje, dia da minha despedida, a Lucinha levou-me para passear e foi somente elogios:” você está forte! o Luis vai chegar da Austrália o mês que vem, vai chamá-lo de meu rei!” Eu e o Luis sempre tivemos este espírito aventureiro e livre.

Voltamos para casa, ela abraçou-me e foi corrigir os textos de seus alunos. Sei que ela fica distraída e aproveitei o momento, para cometer o meu suicídio. Ela há de compreender, estou com 17 anos e não consigo mais suportar as dores, as dificuldades para enxergar, levantar, latir, correr… Cheguei ao fim de uma existência plena e feliz. Durante a minha trajetória, procurei não adiar os meus sonhos, pois sabia que, um dia, a doença iria chegar.

Sorrateiramente, desci as escadas e mergulhei. Agora resta-me ser descoberto.

Já ouço a voz da Lucinha: ” Meu Rei, Meu Rei…” Ela passa ao meu lado e não me vê. Fico aliviado, ela já viu tanta cena triste, pode não suportar. Aos poucos o choro desesperado bradando o meu nome, as buscas em vão. Quando o Cláudio desce sozinho para inspecionar a piscina, ele descobre a cena e chora como um menino.

Fico tranquilo, a Lucinha não conseguiu me ver neste estado, os adolescente-adultos estão fora de Jundiaí e tenho a certeza: todos hão de entender. A saudade, insumo da alma, ficará onde quer que eu vá.

Não fiquem tristes caros leitores e leitoras, o curso da vida é assim, enigmático. Enquanto puderem façam como eu fiz: saboreiem todos os momentos, pois não há reprise!

P.S: bateu uma saudade do meu Dick e não resisti em resgatar esse texto.

Lucia Helena de Andrade Gomes é advogada e doutora em Educação

Prev Post

Martinelli: um craque que marcou…

Next Post

Caldo de camarão

post-bars

Leave a Comment