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 Pandemia, máscara e cinema
16 de maio de 2020

Pandemia, máscara e cinema

Por Luiz Haroldo Gomes de Soutello

Pelos próximos meses, vamos todos usar máscaras, até que se descubra remédio que cure ou vacina que imunize contra a peste conhecida como Covid-19. Máscara descartável, que é bom, não se acha para comprar. A maioria das pessoas está se virando com máscaras artesanais de pano. De modo geral são feitas com pedaços de roupa velha, mas já começaram a surgir algumas mais elegantes. E já se começa a especular que em breve teremos máscaras de “griffe” (êta palavrinha brega). O lado positivo, se se pode falar em um lado positivo, é que nossa vida vai parecer um grande baile de máscaras. Para mim, que sou fascinado por máscaras, talvez seja uma experiência divertida.

Isso me faz lembrar um filme do Stanley Kubrick intitulado “De olhos bem fechados” (1989). Quem assistiu com certeza se lembra da sequência que mostra uma cerimônia satanista seguida de orgia, em que todos usam máscaras, as mulheres muito pouco além da máscara. Kubrick era famoso por sua minúcia, por cuidar pessoalmente de todos os pormenores. Nada aparece em seus filmes por acaso. Aquelas máscaras foram encomendadas ao Atelier Kartaruga, de Veneza, e são todas elas arquétipos junguianos. Foram escolhidas cuidadosamente para dizer alguma coisa ao nosso subconsciente.

Eu cheguei a conversar a respeito desse assunto com o Professor Lannoy Dorin, ao tempo em que ele era Diretor da Faculdade de Psicologia Padre Anchieta, onde estudou a Maria Helena, minha mulher. O amigo Dorin entende muito de arquétipos e às vezes até se divertia com eles. Pouca gente sabe disso, mas houve época em que ele fazia horóscopo para o jornal, pelo prazer da mistificação. Os recortes desses horóscopos junguianos estão em algum lugar no meio da papelada da Maria Helena.

Mas, voltando ao filme do Kubrick, entre todas aquelas máscaras há uma bastante sinistra, que parece a cabeça de um pássaro, com um bico bem longo. Era nessa que eu queria chegar. Como as outras usadas no filme, essa também é uma máscara veneziana, feita para carnaval. Não foi um modelito exclusivo encomendado pelo Kubrick, é uma máscara bastante comum no carnaval de Veneza. O modelo chama-se “doutor da peste”, porque é inspirado nas máscaras usadas como proteção, no século XVII, pelos médicos que tratavam doentes de peste. Foi inventada pelo médico francês Charles de Lorme (1584-1678), que foi médico de Henrique IV, de Luís XIII e de Luís XIV. O bico longo da máscara era recheado com uma mistura de numerosas ervas aromáticas, para neutralizar o miasma (ar envenenado) que se acreditava fosse o causador da peste.

No filme de Kubrick, o personagem Victor Ziegler usa uma máscara um pouco diferente, sem bico e com uma proteção para a boca, que é uma variante carnavalesca da “doutor da peste”. Um modelo parecido é usado por várias pessoas em um baile de máscaras que acontece em outro filme, “Tintomara” (1970), uma produção sueco-dinamarquesa dirigida por Hans Abramson, com Pia Gronning no papel título e Britt Ekland como coadjuvante. Também é um filme recheado de mensagens subliminares.

O escritor irlandês Oscar Wilde (1854-1900), famoso por suas frases de efeito, afirmou que “uma máscara diz mais que um rosto”. Talvez por isso, nas artes cênicas e nas artes plásticas às vezes se procura dar a um rosto a aparência de máscara.

No filme de Kubrick, antes da sequência da orgia, quando o Tom Cruise ainda está na locadora de fantasias, aparece durante uns poucos minutos a filha do dono da loja, em trajes menores, interpretada pela atriz Liliane “Leelee” Sobieski, maquiada de forma a dar ao rosto aparência de máscara. Isso dá àquela sequência um apelo erótico sutil, mais poderoso que o da orgia ou que o da cena de sexo explícito em que a Nicole Kidman, completamente nua, é possuída pelo parceiro de forma não muito ortodoxa.

É claro que contribui para o apelo erótico da sequência na locadora de fantasias o fato de que a Sobieski tinha apenas dezesseis anos quando filmou aquela sequência, e um corpinho de adolescente para ninguém botar defeito. Mas eu ainda acho que foi o rosto de máscara kabuki que fez a diferença.

Máscara “doutor da peste” e sua variante sem bico, usadas no filme de Kubrick.


Gravura de 1656 mostrando um doutor da peste.

 

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