LOADING...

Jundiaqui

 A mulher do supermercado
16 de junho de 2021

A mulher do supermercado

Um encontro inesperado, biscoitos de gengibre e um desfecho à lá Oscar Wilde

Cláudia Bergamasco

Não sei o seu nome, mas gosto do seu sorriso.
Não sei onde mora, mas levaria você a morar comigo onde quer que fosse e como fosse.

Você já não é uma garota, mas eu não procuro uma garota. Quero uma mulher para amar. Seria você essa mulher que me apareceu de súbito no corredor de biscoitos do supermercado? Assim, sem aviso prévio? Que gelou meu estômago, congelou meus olhos nos seus olhos? De onde você saiu, mulher que me deixou vidrado?

Vou me aproximando passo a passo com meu carrinho próximo a gôndola e sinto sua pele fria e fina, seus olhos um tanto tristes, pálpebras suavemente sonolentas que o tempo lhe deu como um presente e um brilho estrelar que pulsa nos seus olhos azuis acinzentados.

Desejo nesse momento esquecer as leis do tempo. Esquecer não, se adiantar, pagar nosso tributo de uma vez e te levar comigo para sempre. Raptá-la e amá-la como a primeira e a última. Mas, como será seu coração? Livre? Acorrentado? Apegado a alguém que lhe foi ou é importante? Quente com certeza. Amoroso com certeza; seus gestos, eu vejo, denunciam. Afinal, o que lhe vai pela cabeça ao olhar um pacote de biscoitos sem graça num dos corredores de um supermercado desprovido de qualquer graça? Sua alma parece estar longe, seus pensamentos na lua.

E como um sujeito como eu, que me considero um tanto tosco, um tanto um tanto rude, embora provido com olhos de ver fundo, afoito, afogueado e apegado nas letras impressas, poderia sequer imaginar ter essa mulher tão graciosa, tão apetitosamente doce e agridoce. Sim, ela me parece ter também um gosto agridoce, algo que soa forte, pronta a fazer o que for preciso a quem precisa. Ou talvez ela mesma precise muito de algo. Ranjo os dentes por não identificar imediatamente o que seja, a situação é nevoenta como uma manhã de inverno na praia. No entanto, sinto o sol brilhando escancarado na minha cara e no meu coração. Catso!

Chego um tantinho mais perto e sinto um aroma. Ela cheira a verbena com capim limão, cheiro cítrico, sem delongas, perfume elegante. E aquele tom triste nos olhos… ah, que vontade de tê-la em meus braços, em meu colo, carinhando suas feridas, tocando seus cabelos e sua nuca enquanto velo seus olhos pesados tentando não cair num sono que, eu sei, há muito ela necessita.

Paro como um bobo sem chão no corredor do supermercado a olhar aquela mulher que a mim parece fantástica. Quanto carinho ela não teria a dar? Quantas histórias ela não teria a contar? Quantos lugares do mundo não visitou. Pode até ter morado em algum deles. Experiência acumulada que eu vejo na pele, branca a ponto de mostrar as veias das mãos – dois anéis na esquerda, um no anular e outro, maior, no dedo médio. Não usa aliança. Seria descasada?

Cabelos curtos à Chanel, loira de nascença que agora pinta as madeixas com a cor de areia de praia nunca descoberta pelo homem, usa um jeans surrado, camisa por dentro da calça imaculadamente branca e bem passada aberta até a altura do sutiã deixando revelar um naco de renda cor de rosa chá. Sapatos de salto médio, confortáveis, me parece. Um visual displicentemente elaborado.

Em que mundo ela vive, assim lendo ou fazendo que lê o rótulo da embalagem em formato de canudo de um pacote de biscoitos? Faz um estilo blasé de quem não sabe as sensações/emoções que provoca em um homem como eu. Sinto um quê de raiva e inveja. Mas meu corpo todo denuncia um afã incontrolável de tê-la para mim para sempre, a cuidá-la e a deixá-la voar. Livre, nunca refém de uma paixão. Por um instante lembro de um ditado recitado a mancheia em todos os lugares: “É melhor morrer com coragem do que viver com covardia.” Eu hei de ter coragem de abordá-la em alguns instantes. Caso contrário, temo perder a única oportunidade de me fazer feliz e, quem sabe, fazer o mesmo a ela. “A vida não passa de uma longa perda de tudo que amamos”, lembro de outra citação, essa de Victor Hugo. Não estou mais para perdas, senhor Hugo. Perdôe-me, mas chegou a minha vez.

Dou meia volta e vou ter com os produtos da gôndola paralela, um pretexto para olhar para ela de costas. Corpo bem delineado. Gostosa. Imagino as rendas de sua lingerie na sua pele, nos seus pelos. Arrepio e sinto meu sexo se avolumar por baixo das minhas calças. Volto a ela, pego um pacote qualquer. Abordo? É agora! “Oi, você já experimentou esse aqui?” “Oi, não, nunca experimentei”, diz a mulher como que saindo de um transe. “Mas parece ser muito processado. Porque não prova esses aqui? Parecem mais artesanais”, diz escolhendo uma marca em embalagem de caixa de papelão. “Mas nada se compara aos feitos em casa”, completa. “Você cozinha?” “Ah, não muito, mas faço uns biscoitos sim. De gengibre.” “Jura? Adoro gengibre.” Ela sorri.

Tive ganas de perguntar se ela faria para mim uma fornada na sua casa já, mas me contive. “Formada em gastronomia?” “Eu? Imagina. Deixo queimar arroz.” “Sabe que eu faço um arroz de forno com cogumelos na manteiga e especiarias que fica ó”, e beija a ponta dos dedos explodindo-os no ar, exatamente como um bom italiano. “Verdade?” “Você arriscaria experimentar?”, pergunto.

Será que passei dos limites? Ela abre os olhos, suspende o rosto e me olha com surpresa. “Até arriscaria, mas acho melhor nos atermos aos biscoitos.” “Na sua casa ou na minha?” Ela levanta uma das sobrancelhas e solta um riso tão largado e gostoso que deixa cair o pacote de biscoitos em suas mãos. Pego e aproveito para me aproximar um passo a mais dela. “E então?” Ela ri mais ainda.

“Meu nome é Pietro e moro aqui perto, na rua das Flores.” “Pietro, você é uma figura! Belo nome, aliás. Italiano, com certeza.” “Sì, certo, belíssima.”

Aproveito a deixa e pergunto o dela. “Cláudia, prazer.” “Belo nome, Cláudia. Italiana, com certeza.” “Sì, Sì”. Tiro do bolso um pedaço amassado de papel e rabisco meu telefone. Ela toma para si sorrindo com zombaria. Dou a volta e sigo devagarinho para outro corredor. Mas não a perco de vista. Um tsc tsc e ela enfia o papel na bolsa de couro sem grife que comprou numa liquidação em Buenos Aires.

Ainda a sigo de longe por mais alguns corredores e vou ao mesmo caixa que ela. “Olha você de novo”, ela diz marota. “Se não estivéssemos num supermercado eu diria que você está me seguindo.” “De certa forma.”

Cláudia me olha nos olhos sem dizer nada, mas mantém um sorriso fechado na boca carnuda e rosada. Passa as compras, paga com cartão. Puxa uma caneta e um papel da bolsa de couro de ombros e me dá. “Eu não vou te ligar, mas você pode me pedir biscoitos de gengibre com esse número. Empurra o carrinho e, no meio do caminho da saída dá uma olhada para trás à minha procura e faz de novo uma carinha ainda mais marota.

Nesta noite tenho um encontro com Mônica, uma garota, essa sim uma garota, que conheci não faz muito tempo. Estou pronto a satisfazer seus desejos, até o de namorar em pé, no boxe do banheiro. Mas, ato contínuo, enquanto a possuo, penso em Cláudia e seus fantásticos biscoitos envolto em rendas rosa.

Falho com Mônica e não lhe dou explicações. Teria o peso do acaso alguma culpa? Eu sei, todo mundo sabe, que a tristeza do espírito, algumas vezes, se cura com as alegrias da carne. Mas, nesse caso, só fez aumentar minha tristeza e incitar-me raiva de mim mesmo. Sem contar que deixei Mônica fulá da vida, batendo portas.

No fundo e na verdade, estou dilacerado por uma saudade que não sei de onde vem, como ou porquê, já que conheci Cláudia no dia anterior. Mas ela não deixa meus pensamentos em paz. É um contrassenso, eu sei, mas ninguém controla seu coração nos assuntos sentimentais. Olhei e me vi nela e isso já basta. Percebi que gostei de me ver no brilho dos seus olhos, que, de algum modo inexplicável, ela me faz bem.

Dia seguinte, acordo angustiado. Quero telefonar para Cláudia sem parecer ansioso como de fato estou. Espero mais um dia e sinto meu coração a sair do peito. “Alô, gostaria de falar com Cláudia, por favor.” “É ela.” “Oi, Cláudia, é Pietro… do supermercado.” “Ah, oi! Desistiu dos biscoitos ou ligou para encomendar?” “Para encomendar. Mas, você permitiria que eu provasse antes?” “Claro! Posso levar até sua casa ou podemos combinar um local.” “Ótimo, que tal aquele café que inaugurou há pouco tempo? Tem também um lugar que é muito bom, a Bolices. Os doces são incríveis. Poderia até fazer comparações com seus biscoitos”, fala soltando uma risadinha. Ela também ri, parece ter levado na esportiva e até gostado da brincadeira. “Melhor não ter concorrências, caso contrário você vai preferir os doces. Eu levo uma caixa no café. Que tal amanhã à tarde?” “Você vai me conquistar com biscoitos feito em casa, por você, justamente na hora do café.” “Hahahaha, essa é uma boa ideia. Vou passar a aplicar essa tática para ganhar clientes.” “Então, combinado, amanhã às três, pode ser?” “Combinado. Até lá”. “Até lá, Cláudia.”

Meu desejo era falar, “até la, minha doce mulher, até lá, minha querida, até lá, meu amor, mas não é possível que eu esteja tão vulnerável por uma mulher. Jamais aconteceu algo sequer semelhante, disse Pietro a si mesmo em voz alta. Dio, che sucede??

Dia seguinte, no café, à hora combinada, ele a recebeu na porta, com um alvoroço infantil de boas-vindas, o que deixa Cláudia envergonhada. Ela carrega uma caixa de papelão retangular branco amarrado com uma fita amarela. “Trouxe dois sabores.” “Hummm, quer me pegar pelo estômago.” “São os que faço sempre e sempre dão certo, os de gengibre, tipo gingerbread americano, mas sem decoração, e os de gengibre com lágrimas de chocolate 50%.” “Parecem divinos.”

Pietro e Cláudia pediram café, ele comeu todos os biscoitos, encomendou uma caixa grande de cada e a conversa fluiu como águas num rio calmo, limpo, claro e caudaloso. Saíram já era quase noite como dois velhos amigos. À noite, Pietro lhe telefonou para agradecer à tarde maravilhosa que ela lhe proporcionou e o papo se estendeu por horas. Decidiram se ver de novo no dia seguinte e no outro e depois no outro. Sentiam-se confortáveis juntos e riam muito. Pietro, muito bem-humorado, sabia tornar seus encontros memoráveis. Cláudia, mais contida, gostava desse jeito de Pietro porque se soltava, o acaso deixava as coisas claras de uma maneira tão divertida quanto profunda e inesquecível. Logo Cláudia se viu apegada a Pietro. E ele resolveu que era hora de confessar que se apaixonou perdidamente por ela assim a viu no supermercado.

O ar tornou-se mais denso. Ambos se calaram, abaixaram os olhos para depois se mirarem por um tempo que pareceu uma eternidade. Pietro a abraçou pela cintura e, devagar e delicadamente, a beijou. No rosto, na ponta dos lábios e um beijo cinematográfico aconteceu. Ele queria mais, mas Cláudia o afastou. Rememorou o dia em que olhou para o homem em que se perdeu de amor e teve medo de ser rejeitada novamente, embora Pietro nada tivesse com seu primeiro amor, nem a milhas de distância. Eram como água e óleo, mas ela se feriu tanto que de uma forma cálida rejeitou o homem que se dizia apaixonado por ela bem na sua frente.

Aqui vale uma ressalva: Se, como tem sido dito com frequência, os amores românticos são os amores difíceis, aqueles em que há algum impedimento que deixa duas pessoas se entregarem sem obstáculos para consumar a paixão (e, ao consumá-la, inadvertidamente também a consomem e fazem com que vá se extinguindo pouco a pouco), então o que nos mostra essa situação sui generis é um amor de romantismo intenso porque enfrenta um obstáculo. Um obstáculo que é de índole psicológica e só poderá ser removido por um querer intenso de Cláudia.

Na cama, Cláudia sentiu- se culpada e até revoltada por não ter aceitado Pietro. Quis ligar, sentia falta das longas, divertidas e profundas conversas ao telefone madrugada adentro, mas desistiu. Pietro, por sua vez, permanecia arrasado. Estava realmente apaixonado e não imaginava sua vida sem Cláudia àquela altura do relacionamento. Um homem machucado, humano, leal, feito de boa fibra, viu sua autoestima recuperada ir ralo abaixo. Sentia-se indefeso, sofrido, espoliado por uma mulher ingrata, um anjo perverso.

Uma semana se passou sem que nenhum dois dois tivesse contato. Numa manhã cinzenta de junho, Cláudia acordou chorando. Olhou seu rosto no espelho, viu uma mulher combalida, profundas olheiras por noites e noites sem dormir e um desejo imenso de mudar o curso de sua história. Ela também estava apaixonada, admitiu finalmente. Tomou um banho, perfumou seu corpo com seu cheiro de sempre, verbena e capim limão, vestiu a lingerie de renda rosa, calça, camisa e um sobretudo verde oliva claro. Apertou a campainha de Pietro com uma caixa de biscoitos na mão. Ele estava um caco: barba por fazer, cabelos fartos e acinzentados desgrenhados, pijama, chinelos e um roupão de lã xadrez. Ao seu lado, João, o cão Labrador loiro que balançava o rabo ao ver Cláudia.

Nada disseram, apenas se olharam. Suas almas se leram com os olhos e os dois sabiam o que era preciso fazer. Já se sabe que Oscar Wilde disse que a única forma de superar uma tentação é ceder a ela. Cláudia não cedeu. Ela se deu com o coração limpo para o homem que lhe fazia melhor e feliz. Pietro não cedeu, simplesmente tomou para si o que ele já sabia, há muito, o que era dele.

Cláudia Bergamasco é escritora

Prev Post

Covid: mais 7 óbitos e…

Next Post

Toda a beleza natural no…

post-bars

Leave a Comment