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Jundiaqui

 Sem açúcar, com afeto
10 de outubro de 2018

Sem açúcar, com afeto

Uma tatuagem de boca, tão metida e desavergonhada, era como uma resposta às torturas silenciosas que Michelle sofria dia a dia, diz Cláudia Bergamasco

Cláudia Bergamasco

A menina tem uma tatuagem de boca e uma palavra ou um nome ilegível no pescoço. Uma boca vermelha, enorme, com uma palavra em preto logo abaixo. Impossível não notar. Ela, que nasceu ele, joga os cabelos muito longos tingidos de negro para o lado deixando à vista as marcas feitas com tintas, agulhas e dores na sua pele. As cores ainda vibrantes das tatuagens denotam terem sido feitas recentemente.

Ela tem orgulho de sua decisão, tomada anos depois de se assumir como Michelle. Demorou muito para os cabelos crescerem, dos quais cuida muito bem. Fez progressiva e, semanalmente, faz chapinha e hidratação. Naquele dia, ela escolheu trabalhar com um jeans skinny destroyed deixando suas pernas Iongas e muito finas bem marcadas, o que contrastava com seus braços musculosos e seus peitos de silicone, pagos em muitas vezes com empréstimo numa casa pouco confiável para esse fim. Mas era o jeito, já que trabalha como autônoma, as clientes são escassas, não tem comprovação de renda, fiador ou bens para garantir o dinheiro emprestado a juros exorbitantes. Porém, ela, finalmente, tem seus seios. Grandes e duros, ainda que falsos. Ela ama a figura na qual se transformou, forjada pouco a pouco por anos a fio e muita dor e garra, porque a natureza lhe pregou uma peça: lhe deu um corpo de homem e cabeça e alma de mulher.

O jeans tem cintura baixa e a camiseta preta e dourada de alcinhas deixa seu umbigo de fora. Sandálias de salto, um jeito dançante e gingado de andar e um detalhe curioso: ela trabalha de óculos escuros. Como cabeleireira, faz cortes, escova, tingimentos e quetais usando óculos com lentes dégradés em marrom e dourado. Eu enxergo tudo muito bem com meus óculos, diz ela a quem questiona se ela consegue trabalhar direito com o acessório sem grau. O brinco não combina. Naquele dia, ela escolheu um modelo de argola grossa prateada que contrastava com seu tom de pele escuro.

Faz a barba e maquila seu rosto todos os dias impecavelmente. Lábios grossos pintados à perfeição. Olhos grandes, escuros como jabuticabas, cílios implantados bem longos. Unhas compridas, vermelhas e bem feitas. Uma figura provocativa, que instiga olhares. Muitas mulheres se recusam a ser atendidas por ela, embora ela trabalhe bem e calada, mas sua voz grave demais, masculina demais, depõe contra.

Era visível que a moça estava felicíssima com seu visual e que sua autoestima é elevada. Mas, havia dias em que ela acordava do avesso e não ia trabalhar. Não avisava e deixava as clientes na mão. Simplesmente acordava sem vontade. Tinha mais gana de se arrumar e ir ao shopping ou bater perna na 25 de Março, no Brás ou na Zé Paulino a fim de dar um up no seu guarda-roupas já abarrotado de peças sensuais, provocativas e um tanto rampeiras. Mas era desse estilo que ela/ele gostava.

A grande boca vermelha em seu pescoço sugeria, talvez, um pedido de carinho um tanto bruto, selvagem, como um chupão ou um beijo mordiscado seguido por lábios e línguas bem entrelaçadas, salivadas. A tatuagem traduzia um naco da sua personalidade, assim como a opção de trabalhar com óculos escuros, os cabelos negros alisados jogados para o lado.

No fundo, a moça buscava a aceitação e a aprovação não só de seus pares, mas da sociedade que ela considera hipócrita por dizer que não tem preconceito de gays, lésbicas e afins, mas que claramente tem. As situações que enfrenta todos os dias – no ônibus, na rua, no trabalho, na casa dos pais, na casa do namorado, nas lojas, em qualquer lugar – provam sua tese.

A batalha diária da moça, de nome de batismo Afonso e de “guerra” Michelle, é grande. Ela sofre calada. Ao olhar para aquela figura delicada ao mesmo tempo com traços masculinos, como pés, mãos e torço, é de se perguntar se ela foi amada o suficiente. Mas, o quanto é o suficiente? Essa é uma pergunta que pode ser feita a qualquer pessoa, aliás. Você que está lendo este texto, por exemplo. Pense antes de responder.

Depois de tantos anos, Michelle havia se acostumado a ser tratada com desdém, estupidez, desconfiança, intolerância, desprezo. A tatu de boca, tão metida e desavergonhada, era como uma resposta a essas torturas silenciosas que sofria dia a dia. Uma forma de dizer que não estava nem aí para o que os outros pensavam dela, o que ela fazia, como se vestia, com quem saía e porquê.

Claro que ela gostava de balada, de escapar de casa à noite toda montada. Visual vistoso, por assim dizer, saía com o namorado com quem estava há três meses – o tempo mais longo que conseguiu ficar com alguém até aquele momento. Edgar gostava de Michelle, mais do seu corpo do que dela. Michelle nem tanto, mas ela o preferia a ficar sozinha. Edgar era um tanto grosso, tosco e tinha gosto de fazer sexo com fúria. Como diz aquela música, “que noites de alucinação passo dentro daquela mulher…”

Michelle se deixava entrar e fingia prazer na tentativa de ser amada, o que nunca acontecia. Não com Edgar nem com os outros homens com quem se relacionara até aqueles seus 25 anos. Daí ela se fechava. O ser humano, de modo geral, escolhe inconscientemente ver e o lado negativo das coisas. Michelle escolheu ver e batalhar pelo positivo, pela oportunidade e, assim, não se deixar vencer pela ignorância alheia. Mas falhava nesse aspecto e muito por conta de suas escolhas.

Com muito sono, ela ia trabalhar no dia seguinte. Fazia a barba, o make, arrumava os cabelos e punha uma máscara de felicidade plena para atender suas clientes. Ao menos fisicamente ela era feliz. Já por dentro, carecia daquilo que nunca teve e que, talvez, nunca tivesse. A máscara, a tatuagem de boca, eram um caminho de fuga, de chutar o balde e gritar dane-se tudo, eu sou assim mesmo. Quem quiser, que me aceite como sou e não como você ou a sociedade quer que eu seja.

Aos 25 anos, ensino médio pela metade, Michelle sabia que ela sempre teria justificativas suficientes para embasar atos, atitudes e decisões que considerava certas para ela. Mas não aceitava se fazer de vítima. Estava convencida de que a vitimização é também uma forma de conquistar a comiseração alheia, conquistar o coração de quem ela estivesse a fim, mas por um caminho torto. Ela só queria um amor e uma boca quente que lhe desse um beijo carinhoso, suave e verdadeiro.

Cláudia Bergamasco é escritora

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