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 Uma avó, uma neta, um trauma
9 de março de 2019

Uma avó, uma neta, um trauma

Izildinha era apenas uma criança e presenciou algo que jamais esquecera por toda sua vida, conta Cláudia Bergamasco

Cláudia Bergamasco

Izilda era uma menina doce, mas de opiniões fortes para os seus 10 anos. Primeira filha de uma prole de quatro irmãos, Izildinha, como a chamavam, tinha a alma pura e leve, como era de se esperar de uma criança de sua idade, nascida e criada no interior de Santa Catarina, na pequena cidade de Treze Tílias. Cabelos loiros, ligeiramente cacheados, puxara ao pai, de não tão longínquas origens italiana e alemã.

Um dia, sua avó materna, dona Adelaide Thaler, viera do Sul de Minas Gerais só para ver o irmão, seu Adamastor. O que ninguém contava era com a ousadia, por assim dizer, de dona Adelaide, já que o irmão havia falecido há dois anos. Ela não pudera ir ao enterro, por motivos que Izildinha nunca soube, e, com o argumento de que precisava transferir o corpo para o jazigo da família, em outro cemitério, mandou exumar o corpo. E assim foi feito.

O fato é que dona Adelaide levara a neta e o filho mais novo, fruto do segundo casamento, ao espetáculo macabro. De manhã cedinho, a avó pegara a neta em casa sem a mãe da menina saber e lá foram os três para o cemitério mais antigo da cidade. Não se sabe até hoje porque a avó escolhera Izildinha para acompanhá-la.

Atravessaram a grande abertura abobadada, com pé direito triplo, como normalmente são os cemitérios mais antigos de paragens interioranas, seguiram por pequenas trilhas assentadas com pedras portuguesas gastas e enegrecidas pelo tempo, em meio a túmulos e covas de toda espécie, incluindo aquele tipo do qual Izildinha mais sentia medo: o sepulcro familiar.

Parecido com uma casinha de bonecas, mas tenebroso pelo que trancafiava, adornado com grossos e enferrujados portões de ferro, por entre os quais se via figuras de anjos e santos enfeitados com recipientes para velas e flores.

Alguns desses sepulcros tornavam-se ainda mais assustadores para Izildinha porque sustentavam grandes esculturas em mármore, sempre com temas tristes, desoladores, piedosos. Sem contar as portas de vidro, quase sempre quebradas, e o cheiro característico de flores mortas.

Izildinha odiava cemitérios. Gelava só de falar essa palavra. Nunca havia ido a um velório e muito menos presenciado um enterro. Cultivara pavor por esses lugares desde muito cedo, não se sabe por qual motivo.

Quando saiu com a avó, não conhecia o significado da palavra exumação. Tinha apenas uma vaga ideia, um pressentimento, de que dona Adelaide estava por fazer algo que lhe parecida errado, ruim, profano. Nunca julgou provável a avó lhe fazer mal. Mas fez.

Não houve, claro, embate físico. Porém, emocional e psicologicamente, Izildinha nunca mais fora a mesma.

Dona Adelaide chorava e soluçava baixinho com as duas mãos segurando o rosto enquanto os homens marretavam a lápide pobre, sem qualquer cobertura. Era uma cova no chão coberta toscamente com camadas de cimento, pregada a outras duas igualmente rudes e grosseiras, numa parte baixa e erma do cemitério, próxima ao muro.

Quando finalmente chegaram ao caixão, já quase se desfazendo, os homens desceram no buraco fundo e o içou.

Aquele foi um momento crítico. Houve um silêncio ensurdecedor, como se toda a cidade estivesse congelada. Nenhum pio se ouvia. Abrir ou não a tampa? Sem considerar que ali estavam duas crianças puras e inocentes, apenas iniciando a vida, dona Adelaide fez um sinal positivo com a cabeça.

Izildinha começou a chorar, tremer, o ar se rarefez ao seu redor e o tio, filho mais novo da avó, caçoara dela. O menino era dois anos mais novo que Izildinha e demonstrava não bater bem da cabeça. Fazia e dizia coisas desconexas e irritantes, como se tivesse nascido errado. Algo nele denunciava que se tornaria um rapaz problema. Dito e feito.

Ao abrir a urna, os homens cobriram seus narizes com os braços. Um bafo subiu da obscuridade para a claridade daquele dia infeliz e tétrico. Sombrio, apesar do sol daquela manhã.

Izildinha olhou de canto e viu uma coisa que um dia fora o seu Adamastor. Parte do crânio ainda tinha carne e cabelos, mas o terno estava murcho.

Restara somente ossos, roupas puídas, pó, sujeira e, sabe-se lá, se não havia mais algum pedaço de carne por baixo das roupas.

Izildinha não sabia o que fazer. Atemorizada, chorava sem parar. Saiu de perto e se ancorou num túmulo alto, poucos metros distantes dali.

O menino não chorou. Pelo contrário. Estava curiosíssimo para ver o que havia no esquife, o que acontecera com o corpo do tio. Uma curiosidade mórbida que certamente herdara da mãe e a levaria como característica intrínseca pelo resto da vida.

Em alguns minutos, que para Izildinha pareceram ser infinitos, dona Adelaide deu ordem aos coveiros para preparem os restos mortais do irmão para a transferência. E chamou o filho e a neta para irem embora. Sua voz, normalmente alegre, estava grave e pulsante.

Era claro que ela, desde o início, decidira inconscientemente se autoflagelar ao pedir a exumação do corpo do irmão morto havia dois anos. Ninguém entendia o porquê, mas dona Adelaide cultivava desde muito cedo um prazer enorme por todos os assuntos relacionados a morte. Ela não só falava sobre isso, mas costumava ir a enterros de desconhecidos, queria saber detalhes. Um desvio de conduta, diga-se assim, que a família nunca conseguiu explicar.

Calados, os três saíram do cemitério, entraram no carro e seguiram de volta à casa de Izildinha. Quando chegaram, a filha de dona Adelaide se descontrolara.

– “Mãe, o que você fez?!”

Como sua mãe pudera pegar a neta para assistir tal evento? E sem consultá-la, sem sua permissão!

O mal-estar era geral. Izildinha estava pálida, trêmula, seu estômago revirava e não conseguia articular palavra alguma. Sorumbática, entrou em casa, fechou-se em seu quarto e lá ficou agarrada ao seu ursinho de pelúcia.

Por anos a fio, ninguém tocou no assunto. Mas Izildinha estava indelevelmente marcada pelo ato da avó. Sublimara durante décadas tudo o que aconteceu. Não esquecera, só sublimara.

Quando Izildinha beirava os 40 anos de idade, dona Adelaide estava no fim da vida. E aquela história sublimada foi sendo, aos poucos, resgatada do fundo de sua memória. Bem aos poucos. A relação com a avó já não era a mesma há muitos anos e sua doença só servira para afastá-la ainda mais. Izildinha queria perdoá-la, mas não conseguia.

Quatro anos depois de um reencontro constrangedor para Izildinha, dona Adelaide morreu, não sem antes queixar-se e criticar todos os outros três filhos do primeiro casamento. Dizia que nenhum ligava para ela, que estava sozinha. Era mentira, mas, claramente, precisava culpar alguém pelo seu fado, fazer-se de vítima.

Izildinha foi ao velório e acompanhou o enterro de longe. A ferida aberta pela avó nunca fechara. E Izildinha nunca mais fora a mesma. Nunca mais. Mas, ao fechar o esquife, rezou por ela e pediu a Deus que expurgasse todas aquelas lembranças gravadas desde tenra idade, e que perdoasse sua avó também. O caixão foi fechado. Izildinha não chorou. Abraçou a mãe e as duas foram embora em paz.

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