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Jundiaqui

 Domingo de chuva
28 de abril de 2019

Domingo de chuva

Por Wagner Ligabó

Acordar num descompromissado domingo ao som do titilar das gotas de chuva no toldo da varanda do quarto, aconchegado no calor envolvente das cobertas, é algo tão especial que, imediatamente, traz-me de volta os sabores de minha infância. Sempre adorei dias chuvosos, de chuva mansa. Ouvir o som monótono da pingadeira, um doce moto-contínuo, deixa a alma leve e o pensamento solto para voar na imensidão do tempo. E como isso faz bem. Sou um viajante do tempo que adora relembrar o passado bem vivido.

Sinto-me criança ao recordar o carinhoso tio Carlim, irmão mais velho de meu pai, capataz de fazenda lá em Santa Cruz das Palmeiras, terra natal de ambos, que ao menor chuvisco, corria colocar uma latinha debaixo da corredeira do telhado só para saborear o ruído da água martelando o metal. Com sua saudosa voz rouca embalada por um linguajar caipira típico daquelas bandas, classificava aquela como a receita ideal para se “pegar um cobertô de orêia!”.

Lembro-me como se fosse agora as suas histórias de bichos do mato e lendas da floresta que na sua simplicidade criava só para me entreter.E como conseguia.Lembro-me também de seus aviõezinhos de papel que sabia fazia fazer com extrema perícia.Lembro de suas mãos calejadas pela enxada marcar com desvelo a sutileza dos vincos no papel.Voavam como só e, por fazê-los às dúzias, eu levava-os para a escola e presenteava  meus amigos prediletos, sem antes, é claro, fazê-los morrer de inveja ao ver como flanavam os bólidos do tio Carlim. Não tinha prá ninguém.

Páro do gostoso divagar e olho o relógio.São 6 horas em ponto e todos dormem: minha mulher e o Noballs, meu gato. Levanto pé ante pé para não acordá-los. Então sozinho, no silêncio da manhã, permito-me outro tique de meus tempos de menino que é, solitário, encostar o nariz demoradamente na vidraça da janela e ver o dia passar devagar. Sentir o friozinho do contato do vidro tomar conta da face, sorver o delicioso cheiro da chuva e observar as gotas caírem e apostarem corrida em sua superfície.

Um “flash” no tempo e vejo-me garoto olhando a chuva lá do alto do meu apartamento no Largo do Arouche através da vidraça da sala de jantar, apostando qual ganharia o páreo: a gota da esquerda ou a da direita.Eram várias corridas e assim o tempo passava sem que se percebesse.Esta mania tem algo a ver com meu TOC ( transtorno obsessivo compulsivo), que me acompanha desde a tenra idade, pois se o lado que eu apostasse não ganhasse, algo de ruim aconteceria naquele dia.O mais engraçado é que tinha todo um ritual.O início das apostas era quando lá embaixo na avenida passasse um bonde “camarão” e o fim da contagem, quando passasse o próximo. Loucura? Prefiro classificar como criancice patológico-criativa induzida por solidão.

Aliás, sinto muita falta do romantismo dos bondes da capital, principalmente o “camarão”, tipicamente paulistano. Era todo vermelho, cor que chamava muito atenção e por isso o povo deu esse apelido. Eu preferiria os bondes abertos, por curtir viajar no estribo. Eram mais emocionantes. O fiscal ficava bravo, mas aquele tempo era outro. Havia muita educação. A camaradagem sincera dava o tom e nenhuma bronca era ostensiva.

Lembro também de forma fotográfica os reclames afixados em seus interiores que marcaram minha memória: “Veja, ilustre passageiro, o belo tipo faceiro que o senhor tem ao seu lado. No entanto, acredite, quase morreu de bronquite; salvou-o Rhum Creosotado.”. “Largue-me, deixe-me gritar. Na tosse, bronquite ou rouquidão, use Xarope São João.”. “Garcia, o Imperador da Moda”. “Coceira, frieira, assadura, ai meu Deus que grande tortura;mas, eis que tudo ficou bom, pois passei a pomada de São Sebastião”.

E as recomendações da Light, responsável à época por esse meio de transporte, são inesquecíveis: “Cuidado sempre! Prevenir acidentes é dever de todos” “O motorneiro cuidadoso não conversa em serviço” “Cinco lugares em cada banco” “Espere o carro parar” “É proibido fumar nos três primeiros bancos”. Saudosos tempos!

Vale aqui registrar que nesses dias, o café, o pão e a manteiga parecem ter mais sabor que o habitual; o almoço flui mais leve e espiritual e esquecesse do jantar, onde qualquer fruta já é o bastante. O segredo desse dia  é não arrumar a cama, o receptáculo ideal dos felizes indulgentes de carteirinha como nós.

Nós merecemos!

Wagner Ligabó é médico e vereador

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