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Jundiaqui

 Cheiro de livro
22 de janeiro de 2021

Cheiro de livro

Há uma boa diversidade de editoras, que são distintas das encontradas em livrarias de rede

Cláudia Bergamasco 

Que tal comprar um livro novo e levar para casa também um mini buquê de flores frescas da estação? Ou uma caixinha de doces gourmets? Ou ainda pequenos objetos de decoração para alegar sua casa e seus olhos? Ou tudo isso junto? Na Cheiro de Livro você pode.

Com um conceito de negócios sui generis, a livraria abriu suas portas em 17 de dezembro de 2020, na rua Barão de Teffé, 585. O endereço é tão icônico quanto a casa em que está instalada: o imóvel foi projetado e construído pelo arquiteto e urbanista Araken Martinho em 1970.

Os donos são a também arquiteta e urbanista Daniela da Camara, que teceu todo o modelo de negócio da loja, gestado desde 2019, e é autora de projetos vencedores em inúmeros equipamentos urbanos de Jundiaí, e o professor de português e literatura Gustavo Diniz, que traz sua expertise com livros não só da formação em Letras pela Universidade de São Paulo (USP), como de anos como coordenador e curador da Casa Amarela, autodenominada um espaço artístico-cultural e literário com sede na rua São Bento, no Centro.

Tudo na Cheiro de Livro é de Jundiaí: seus donos, a casa, o mestre que a projetou em estilo modernista, a restauração e sua reorganização em ponto comercial comandada por Daniela, assim como todas as coisas ali vendidas, exceto os livros, que têm uma boa diversidade de editoras e são bastante distintas das encontradas em livrarias de rede ou “comuns” por assim dizer. As flores, por exemplo, vêm da floricultura Eliana, de propriedade da florista Eliana Simionato, que carrega 40 anos de experiência na área – e por acaso é mãe de Daniela da Camara. É Eliana que também assina as peças artesanais bordadas à mão como joias enquadradas ou emolduradas por singelos bastidores. Os doces, vendidos em embalagens de quatro unidades, são feitos pelo chef confeiteiro jundiaiense Thales Leoni.

Em resumo, tudo na Cheiro de Livro é de Jundiaí para Jundiaí, feito e pensado por jundiaienses para a cidade. Algo único. Um presente e tanto, principalmente se levado em conta que a loja é inaugurada em meio a uma pandemia que ainda provoca assombro e medo ao mundo e um quebra-quebra geral de negócios planeta afora. Na contramão, a Cheiro aposta na nossa urbe, na nossa gente e chega chegando.

Não que outras cidades não possam copiar o modelo ou que a loja não possa crescer para outras paragens, mas a ideia é a de sempre ser pequena, intimista, gostosa, diferente, que resgate aquilo que há muito foi perdido, que é a livraria do bairro. “A loja foi concebida como uma recuperação do valor cultural do livro físico e do ato de presentear com livros e flores, um gesto simpático, bonito, agradável para quem dá e para quem recebe”, diz Diniz.

Existem vários destaques na Cheiro de Livro que eu vou tentar esmiuçar aqui. A começar pelo conceito de negócio, inédito, até onde se saiba, em todo o Brasil e, quiçá, no mundo. Eu mesma, que sou rata de sebos e livrarias desde tenra idade (a começar pela escola Argos e pelo Gabinete de Leitura Ruy Barbosa) – e, ao longo da vida ter conhecido livrarias em vários países, inclusive a famosa Barnes & Nobles, em Nova York, num tempo (1997) em que o digital não estava no radar de ninguém –, nunca vi nada igual. Trata-se de um modelo que une o livro ao lúdico, o livro a objetos sensoriais, como flores frescas de corte, doces, pequenos gifts para a casa garimpados a dedo ou literalmente feitos à mão.  “Queremos retomar a raiz das mensagens que importam”, diz Daniela.

O caldo desse modelo de negócios resulta, no fim das contas, na incitação dos cinco sentidos: a visão, o tato e o olfato com os livros, as flores e os objetos; o paladar com os doces, e a audição com o som ambiente da loja. No dia em que eu fui fazer a entrevista para esta reportagem, uma música suave instrumental com pássaros e água caindo numa fonte ou cascatinha era o pano de fundo. Juntos, esses receptores sensoriais nos permitem captar sons, imagens e toques (a relação tátil que temos com os livros) e perceber a delicadeza e a sutileza que por ali reinam.

Eu acrescentaria um sexto sentido aos outros cinco, um que eu chamo de sentido da alma. Toda vez que você lê um bom livro as palavras, frases, parágrafos inteiros, páginas e mais páginas ficam tatuados na sua alma. Não é raro ficarem por toda uma vida, ainda que você nem perceba, ajudando a formar ou firmar (conforme a idade do leitor) seu caráter, sua ética, sua moral, suas opiniões. As flores (mini-buquês a partir de 17 reais), que tendem a aumentar seu papel como presente ou compras na loja, reforça todos os seis sentidos.

“A pandemia nos deixou numa situação muito crítica, todas as pessoas tentam imaginar como superá-la de alguma forma. A loja preenche algumas das necessidades da individualidade e do coletivo com livros e que você pode aquecer a alma também presenteando quem você gosta”, diz Diniz. Esse tipo de gesto, o de presentear com livros, flores doces e mimos, encerra um carinho muito grande, uma delicadeza e uma preocupação com o outro que alivia o confinamento, as restrições sociais. São abraços e beijos que chegam por transportadora – quando comprados on-line.

Outro destaque é a curadoria literária. Tem gente que sabe bem o que quer quando vai comprar um livro e tem momentos que se quer ler um bom livro e não se sabe bem por onde começar. Ou quer presentear com livros e não tem certeza do título e/ou autor que vai agradar. Aí entra a figura do curador, a de Gustavo Diniz, que vai reunir, a partir do gosto, das referências culturais, do perfil do comprador ou da pessoa a ser presenteada, uma seleção interessante – incluindo autores jundiaienses. E se você quiser um livro específico que não está disponível no acervo da loja, Gustavo faz a mágica e trás o tesouro para você. O mais bacana: a loja entrega o presente em Jundiaí inteira, com fretes que variam de 2 reais a 10 reais, embalagens simples e elegantes, como caixas ou embrulhos em papel craft e fitas, etiqueta que é um cartão e, claro, marcadores de livro (muita gente, como eu, coleciona marcadores de livros).

“A curadoria literária nada mais é do que a escolha, a indicação e a seleção do livro e para isso se estabelece um diálogo entre o curador e a pessoa que quer comprar para si ou presentear”, explica Gustavo Diniz. Há três meios de acesso à curadora: a loja física, o site e pelo WhatsApp. “A curadoria não é impositiva, mas um diálogo”, reforça. Essa mediação é um processo educativo para os dois lados (leitor e curador) e, por isso, “não é fácil”, ressalta o bibliógrafo.

A loja tem um acervo pequeno em tamanho, mas bem generoso em qualidade. São livros raros, edições especiais, editoras pequenas que prezam pelo conteúdo e pela apresentação do livro, com ilustrações artesanais, em papéis especiais – de novo o sentido tátil das obras. Como o compilado de todos os contos dos irmãos Grimm, ou a edição especial de O Patinho Feio, de Hans Christian Andersen. Clássicos para toda a vida e para qualquer idade que não se vê em qualquer livraria.

No fundo, a Cheiro de Livro é a personificação física dos rumos das livrarias no Brasil, que eram pequenas e segmentadas por temas, tornaram-se grandes, depois gigantes (quem não lembra das megas estruturas montadas em shoppings e ruas com dois e até três andares?) e decaíram como castelos de cartas. “Ficaram tão grandes que tornaram-se impessoais”, explica Gustavo Diniz.

O desfecho desse processo foi o de repensar o modo de vender livros no Brasil. As livrarias que sobreviveram voltaram a ser pequenas no mundo físico e criaram tentáculos na internet. Assim se mantiveram algumas, mas a impessoalidade e a falta de contato do leitor com o livro físico também afastou um desejo que qualquer bibliógrafo tem, o de pegar, manusear, cheirar o livro, ler as orelhas antes de comprá-lo – na loja física ou na da internet. Aqui vale um breve história relatada pela jornalista Mariana Felipe numa matéria para a revista Bula. Ela conta que sentir o cheiro de um livro pode ser explicado pela ciência.

“Nos livros novos, papel, tintas e adesivos geram o aroma característico. Em exemplares antigos, o passar do tempo libera compostos orgânicos que criam essências doces e singulares”, escreve. Daí que bibliotecas físicas mantêm e certamente manterão um charme irresistível para os amantes de livros. Os aparelhos digitais, como os Kindle da vida, vieram para ficar e essa tecnologia vai se desenvolver cada vez mais, mas esses aparelhinhos que acolhem milhares de livros nunca superarão o orgasmo tátil e olfativo provocado pelas páginas impressas de um livro. Ou a deliciosa sensação de ouvir o grafite do lápis afundar no papel quando você grifa uma frase, um parágrafo que toca seu coração. Além disso, há a questão das ilustrações. Algumas são tão elaboradas e impressas de forma tão sofisticada que só a mão do homem consegue reproduzir e atingir a alma e os olhos de quem os manuseia – o que pode nunca acontecer digitalmente. Na Cheiro de Livro você encontra exatamente esse tipo de obra e sensações.

Uma vez na loja, a freguesia se vê invadido por um desejo de esquecer as leis do tempo (minha entrevista, por exemplo, durou quase três horas e eu não vi o tempo passar). Esquecer não, se adiantar às leis do tempo, ler, engolir tudo de uma golfada só. Ou pelo menos adquirir algumas obras e outros tantos objetos, flores e doces de uma vez para que possam ser digeridos, sentidos, vistos e lidos aos poucos. Isso faz todo o sentido nessa nossa curta vida e nesse período longo e nefasto de pandemia por Coronavírus.

A CASA – No ano de 1970, o arquiteto e urbanista Araken Martinho, um mestre do ofício em Jundiaí e, aos 88 anos de idade ainda bastante ativo, projetou e construiu uma pequena casa em estilo modernista na rua Barão de Teffé número 585 a pedido de sua primeira sogra, Aurora Godoy (ele se casou duas vezes). Até pouco tempo a casa permaneceu intacta apenas para o uso da família Martinho.

Quando dona Aurora morreu, o filho de Araken, Renato, ocupou o imóvel com uma empresa de publicidade. Por motivos familiares, a casa ficou disponível para aluguel. Para Daniela da Camara a oportunidade juntou a fome com a vontade de comer. “Desde que montei meu segundo escritório, na rua Messina, eu namorava essa casa e sempre quis ter meu escritório nessa rua.” Por uma feliz coincidência, ela não só conseguiu o imóvel como materializar o antigo sonho de abrir a livraria com um formato sem precedentes no setor.

Assobradada, a casa “tem uma planta bem clara e definida”, diz uma entusiasmada Daniela. “É pequenininha, mas tem uma escala muito boa.” Totalmente restaurado, o segundo andar do imóvel abriga a sala de reunião com piso de parquê original e a sala de projetos da arquiteta. Embaixo, funciona a Cheiro de Livro. Pela vitrine – um janelão que já existia e foi ampliado – se vê um cróton que tem a idade da casa e virou uma árvore verdinha. Isso é bem difícil de acontecer porque crótons são arbustos e raramente crescem como árvores. Na calçada, outra feliz coincidência, um pé de ipê amarelo, a cor escolhida para a fachada da casa e também o tom que dá nome ao espaço artístico-literário-de debates em que Diniz é coordenador e curador, a Casa Amarela.

Entre reforma, restauração e acervo foram investidos 50 mil reais. O retorno é estimado em dois anos. “Queríamos abrir a casa para a rua, que as pessoas se encantassem com o lugar, transmitir beleza, energias positivas”, diz Daniela. O resgate da casa é outro presente que Diniz e Daniela deram para Jundiaí, porque a casa é um patrimônio histórico na cidade, embora não seja tombada.

Para ver e sentir tudo o que a Cheiro de Livro tem a oferecer vale a pena sair de casa devidamente paramentado contra o Coronavírus e levar para casa um pouco dessa alegria, delicadeza e sabedoria que a loja encerra. Seus (seis) sentidos agradecerão.


Cheiro de Livro
Rua Barão de Teffé, 585 – Anhangabaú
Aberta de segunda a sexta das 9h às 18h
Sábados das 9h às 12h
Fone/WhatsApp: (11) 99898-0728
Site: www.lojacheirodelivro.com.br
Face e Instagram: @lojacheirodelivro

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