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Jundiaqui

 Insônia e dor de cabeça 
20 de julho de 2020

Insônia e dor de cabeça 

Jorge estava quase irreconhecível, esbodegado por dentro, transparente e sem viço por fora, conta Cláudia Bergamasco 

Cláudia Bergamasco 

Fazia um frio mais amigo do sono do que da energia de sair da cama para trabalhar, mas, naquela manhã chuvosa e cinzenta, Jorge sentia algo diferente. Sentia-se zonzo, dolorido como se tivesse levado uma surra de taco de golfe na cabeça, ombros e omoplatas. Até os ouvidos doíam.

Ligou para o escritório, explicou que não se sentia bem e iria ao médico. “Sem problemas, seu Jorge, se precisar de algo me chame que eu mando alguém até sua casa”. “Obrigada, Janete”. Desligou e voltou para a cama. Seu crânio pulsava como seu próprio coração. Latejava, parecia ter vibração própria, inspiração e expiração, crescendo e murchando, crescendo e murchando, e assim ao longo de cada segundo.

Além da dor de cabeça excruciante, Jorge não dormira a noite toda. Revirou nos lençóis feito pastel em óleo quente e nada do sono chegar. Seus pensamentos iam de um lado a outro, no trabalho, na namorada, nos pais, no período em que era criança e tudo parecia muito mais fácil e feliz. Ele se debatia sem saber quando seu subconsciente o levaria a um penhasco ventoso em que ele estava à beira de se jogar ou ser empurrado. Nunca foi ao médico verificar o que lhe acontecia.

Não foi só naquela noite que ele não dormiu. Havia muito tempo que Jorge não dormia, o que explicava suas profundas, escuras e avermelhadas olheiras, a falta de atenção no trabalho e na vida, a falta de vontade de fazer qualquer coisa. Ele estava arrasado. A namorada não colaborava, não entendia seu estado. Irritou-se tanto que teve um piti, nem tchau deu. Jogou as chaves do apartamento pela janela da cozinha e se foi para sempre. Nunca deu notícias, nunca mais o procurou, nunca mais quis saber dele. Nem teve a boa educação de deixar um bilhete e as chaves com o porteiro. Foi-se embora como se nada havia acontecido entre eles naqueles oito anos em que estiveram juntos.

Jorge viu as chaves e foi como se tivesse levado um tijolaço na cabeça. Suas dores de cabeça se agravaram substancialmente e seu sono parece ter partido para sempre para terras distantes, onde talvez as pessoas não precisassem dormir para serem saudáveis.

Naquela noite, exausto, ele abriu uma garrafa de Cabernet Sauvignon francês tinto e chorou como um cordeiro que vai para o abate. De dor de cabeça e de dor no coração, porque amava aquela mulher que o tinha deixado sem eira nem beira. Ele não via mais nada, cego de seu futuro. Sentiu-se um pó e um aperto no coração ou o que quer que seja, na falta de melhor palavra para descrever o que parecia ser uma pontada, uma contração, uma sístole a mais, uma diástole a menos, enfim, uma mudança de ritmo no peito em tudo semelhante a um aperto próximo de uma parada cardíaca. Foi o presente que ela deixou para ele ele: uma bomba de Hiroshima da qual ele nunca se recuperaria. Mas, isso, caro leitor, é outro capítulo da vida de Jorge.

Passou a repetir, todos os dias, a mesma cantilena de sempre. “Porquê??” Vez em quando aumentava seu drama tomando suas mãos na cabeça como se estivesse prestes a despencar de um penhasco, igual ao seu pesadelo recorrente. As mãos esfregavam seus olhos para fechá-los, massageavam os olhos que ficaram tantos dias insones que ele já perdera a conta. Seus olhos pareciam bêbados e desesperadamente abertos. Ardiam como se tivessem jogado sal naquelas bolas vibrantes. Os dedos finos e compridos como os de pianistas afagavam as têmporas, mas a dor de cabeça não ia embora e o sono não chegava. Jorge era jovem, mas tinha mais rugas na cara que Mick Jagger e Keith Richards juntos.

Inconscientemente, começou a fazer uma reflexão sobre sua vida, seus atos. Teria feito mal a muita gente? Ele não sabia, achava que não, mas como o que se diz nem sempre é o que se  pensa… Então, ele teria inimigos. Mas, quem? Essa possibilidade nunca pode ser descartada da vida de qualquer ser humano, mas Jorge sempre fora um cara pacato, sem vícios, era diplomático e gentil mesmo com quem lhe tratava com aspereza.

Daria para se prever que sua auto-análise acalmaria sua consciência, deixando-a como a superfície de um lago num dia sem vento, afastando todas as dúvidas a respeito da sua moralidade. Mas, novamente com a cabeça entre as mãos, sentou na beira de sua cama, desta vez nu e exaurido, enredado em algum turbilhão que ele mal conseguia revelar. No fundo, Jorge sabia que, finalmente, tinha conseguido superar inteiramente todos os sentimentos de culpa que sua mãe ansiosa em excesso tinha instilado nele em criança. Sabia mesmo?

Enfim, um dia, sem aviso prévio, ele saiu com dificuldade de um sono que era o mais tranquilo dos últimos muitos meses. Talvez ele necessitasse voltar aos 20 e poucos anos, quando chovia no fim de agosto e ele se deixava encharcar por aquelas águas que caiam de um céu azul lavado e dormia como um bebê. Seus olhos cor de avelã madura e a sua pele da cor de uma lua nublada à noite rogava por um tempo de descanso, sem marchas e contramarchas, ou manipulações. Durante esse breve período ele estava soltando sua imaginação febril, tentando acalmar os nervos com todo ardil e artimanha que ele podia maquinar. Mas a calmaria não durou. A enxaqueca voltou a rastejar sob suas têmporas na noite seguinte.

Jorge estava quase irreconhecível; esbodegado por dentro, transparente e sem viço por fora. Era uma bola com o peso do mundo, um poço de sentimentos secretos que carregou por uma vida dentro de si e não queria admitir. Esses sentimentos tinham estado ali à espera para aflorar como uma criança que nasceu deformada e perturbada e que a família afastou e encerrou para que ela morresse de fome e sede, mas que sobreviveu se alimentando de si mesma no escuro. Sem ninguém para acompanhá-la, senão seu próprio eco no escuro, jurando que iria emergir um dia. O que seria um bálsamo. Mas a dor de cabeça  voltou e o sono foi embora. De novo. E ficou assim, depauperado dos sentidos, com terríveis punhaladas no coração, ao fim de mais um dia escuro e de tantas trovoadas.

Numa manhã, depois de mais uma noite em claro, acordou no chão frio da cozinha. Colocou a mão na cabeça e percebeu um machucado com sangue seco. Assustou-se. De onde tinha vindo aquilo? O golpe abriu-lhe um talho ao lado do crânio, lugar onde moram as memórias, os amores, as esperanças e que devem ter saído todas por aquela fenda, porque além de não lembrar de nada do que aconteceu, o homem não teve mais nenhuma e, como já estava convenientemente deitado, esperou pelo fim.

Esticado como uma roupa na tábua de passar, olhos fechados, lembrou que caiu do banquinho da cozinha. Subiu para pegar algo no armário e escorregou porque o banco tinha rodinhas. Bateu a cabeça na quina da bancada da pia e desmaiou. Quando acordou tornou-se um homem crente, porque havia apagado. Por acidente, mas seu corpo e sua cabeça entraram numa imersão negra na qual ele finalmente pode ter o gostinho do descanso.

Levantou-se com dificuldade, foi até o banheiro e viu o lanho sangrento, seco, ao lado da cabeça, perto dos olhos até quase o centro do crânio. Doía muito, mas estava feliz. Tomou um banho, fez um curativo de qualquer jeito e saiu. Magro e alto como um coqueiro, feliz como um sujeito de rua que recebe um prato de comida quente, e cambaleante, andou pelas ruas cantando e distribuindo beijos com as mãos às pessoas. Passou em frente a uma igreja, ajoelhou-se e agradeceu. Jorge era agnóstico, mas a dor o fez acreditar em algo, uma energia, um anjo que o protegeu e permitiu o sono e a tranquilidade. Acreditava que assim seria para sempre dali para frente.

Ao anoitecer, o céu pardacento, voltou para casa. Deitou feliz na cama, fechou os olhos e dormiu. Por duas horas. Apenas. A maldita dor de cabeça e a insônia o revisitaram.

Cláudia Bergamasco é jornalista e escritora

 

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