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Jundiaqui

 Um pedido a Sílvia Loverso
20 de julho de 2020

Um pedido a Sílvia Loverso

Por Luiz Haroldo Gomes de Soutello

Todos em Jundiaí que gostam de música erudita sabem que a pianista Sílvia Pozzi Loverso é tecnicamente capaz de executar qualquer composição para piano. Mas há uma diferença entre simplesmente executar uma peça e interpretar a mesma peça naquele padrão de qualidade que faz da Sílvia uma Artista com A maiúsculo. Isso exige intimidade com a composição, e essa intimidade não é apenas com a partitura, é com o espírito da mensagem musical registrada na partitura.

É preciso que haja afinidade entre o intérprete e o compositor, e uma convivência mais ou menos longa entre o intérprete e a composição interpretada. Por isso, raramente os grandes pianistas têm um repertório muito variado, como o de Sviatoslav Richter ou o de Gilberto Tinetti. A maioria deles especializa-se em um ou dois compositores. Para dar alguns exemplos, Glenn Gould e João Carlos (Gandra) Martins especializaram-se em Bach, Wladimir Horowitz e Guiomar Novaes especializaram-se em Chopin, Wilhelm Kempf especializou-se em Beethoven, e por aí vai. Sílvia Loverso especializou-se em Debussy, assim como fez o italiano Arturo Benedetti Michelangeli, embora este último também interpretasse vários outros compositores igualmente bem.

Essa é a diferença entre um pianista de sala de concerto e um pianista de boteco. Quando o excelente pianista de boteco Jorge Cury tocava aqui em Jundiaí, no Chico’s Bar de saudosa memória, eu não fazia cerimônia em pedir que ele tocasse isto ou aquilo, porque ele estava lá para isso mesmo e encarava na boa quase qualquer pedido meu, como a “Rhapsody in Blue” de George Gershvin, para dar um exemplo. Mas não é de bom tom pedir músicas a pianistas de sala de concerto, a não ser um bis ou uma obra do compositor predileto do intérprete. Sendo assim, eu venho reprimindo há anos o desejo de pedir à Sílvia que inclua, no programa de algum de seus recitais, a “Pavana para uma infanta defunta”, de Ravel.

Não seria um pedido totalmente fora de propósito, porque Claude Debussy (1862-1918) e Maurice Ravel (1875-1937) foram contemporâneos, eram ambos franceses, viveram no mesmo contexto social, e são ambos rotulados pela crítica como impressionistas, além do que Debussy influenciou Ravel, havendo portanto alguma afinidade entre a música de um e a do outro. Mas também não se deve concluir que quem se especializou em Debussy pode interpretar Ravel sem ao menos um pequeno esforço de imersão no espírito deste último. As impressões embutidas na música desses dois impressionistas são muito diferentes. Embora nascido na França, como Debussy, Ravel era metade basco por parte de mãe. De modo geral os bascos não se consideram propriamente espanhóis, mas a música de Ravel, além de sabidamente influenciada por Debussy, também tem bastante influência espanhola. Especialmente a Pavana.

Basta dizer que pavana era uma dança que esteve em moda na corte espanhola na segunda metade do século XVI e na primeira metade do século XVII, ou seja, no período em que a dinastia dos Habsburgo reinou na Espanha. Era uma dança processional, lenta e solene. Antes de dar início à dança propriamente dita, os pares faziam uma volta completa pelo salão, com reverências ao rei e à rainha, além das reverências entre si. Esse pequeno desfile prévio, em trajes de gala naturalmente, levou um invejoso qualquer a dizer que aqueles aristocratas pareciam pavões. É essa a origem do nome pavana.

O título da composição de Ravel, “Pavana para uma infanta defunta”, é enganoso. Ele próprio confessou que escolheu esse título só por causa da sonoridade das palavras francesas “pavane pour une infante défunte”. Não se trata, porém, de música fúnebre para as exéquias de uma infanta recém falecida. A locução “infanta defunta”, no contexto, significa uma infanta de outra época, portanto defunta há muito tempo, mas a impressão que o impressionista Ravel quis transmitir (ele mesmo disse isso) é a de uma jovem infanta bem viva, dançando solenemente na opressiva formalidade da corte de Madrid. Sendo assim, quando Ravel ouviu o pianista Charles Oulmont executar uma interpretação particularmente lúgubre da pavana, protestou energicamente: eu compus uma pavana para uma infanta defunta, não uma pavana defunta para uma infanta. E de fato a interpretação do próprio Ravel era solene mas alegre. Você pode conferir se quiser, pois, embora seja uma peça composta em 1899, está disponível no Youtube uma gravação com o próprio Ravel ao piano. Ele só morreu em 1937.

É ainda Ravel quem esclarece que se inspirou em um dos vários retratos da Infanta Margarita Teresa (1651-1673), filha de Filipe IV da Espanha (Filipe III em Portugal), pintada em diferentes idades por Diego Rodríguez de Silva y Velásquez. E isso nos leva ao motivo pelo qual este Luluzão que vos fala pesquisou tanto a respeito da Pavana. Eu conto, mas fica entre nós, porque é uma coisa meio romântica, que me deixa encabulado.

Na primavera de 1992, Maria Helena e eu, casados havia pouco mais de dois anos, estivemos em Viena e visitamos meio por acaso um museu de pintura que não estava no roteiro planejado por nós com antecedência. E nesse museu topamos com o retrato da Infanta Margarita Teresa aos oito anos, em vestido azul, pintado por Velásquez em 1659. A semelhança com uma fotografia da Maria Helena quando tinha a mesma idade é impressionante, até na expressão. Compramos uma reprodução impressa do quadro, para comparar quando voltássemos para Jundiaí, e todos os que viram concordaram que, ao menos naqueles específicos retratos, é cara de uma focinho da outra.

Entendem agora por que eu adoro a “Pavana” de Ravel e tenho curiosidade de saber como seria interpretada pela amiga Sílvia Loverso?

Luiz Haroldo Gomes de Soutello é advogado e escritor

 

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