LOADING...

Jundiaqui

 Pandemia e suspensão do tempo – Parte 1
31 de julho de 2020

Pandemia e suspensão do tempo – Parte 1

Por Camaleão Albino – Hildon Vital de Melo

Pandemia e suspensão do tempo é uma reflexão dividida em três partes sobre as novas relações com a quarentena prolongada e com a pandemia que trago aqui ao JundiAqui, nos dias 31 de julho, 3 e 7 de agosto.

O texto é um estudo inicial para análises sobre educação, cultura e sociedade em nosso Brasil atual cheio de vertigens, que mais parece roteiro de distopia.

PARTE I

A cena mais famosa do drama “O Sétimo Selo”, 1956, de Ingmar Bergman, é aquela em que a personificação da Morte (Bengt Ekerot) joga xadrez contra o cavaleiro cruzado Antonius Block (Max von Sydow). O filme exibe a Europa varrida pela fome, a peste e pelas Cruzadas. Pelo controle de Jerusalém, cristãos e muçulmanos conflitaram em batalhas cruéis, numa guerra (nada) santa por mais de duzentos anos. O diretor sueco sobrepõe camadas; filma o medievo escandinavo sob o flagelo Inquisitorial e de caça às bruxas, mas narra também o imaginário sobre o(s) medo(s) do fim do mundo e, claro, os embates da psiquê humana.

As decupagens alternam bem as cenas em lugares abertos e fechados, mas ambas trazem uma sensação constante de um espectador testemunhal, quase um confidente do enredo. “O Sétimo Selo” é dessas obras que, quando bem compreendidas, nos expõe a nós mesmos – é um espelho que nos desvenda.

Mais do que retratar a idade média menos idealizada com seus castelos e enaltecimentos dos valores cortesãos, é uma narrativa sobre a solidão.

Bergman evocou o contexto pós-Segunda Guerra Mundial e início da Guerra Fria. Pesava à Intelligentsia europeia a Shoá (termo hebraico que se refere ao genocídio, mas conhecido como holocausto). O diretor poderia utilizar-se da coloração de imagem, mas optou pela crueza – notamos a sujidade nos rostos de alguns personagens. O percurso quixotesco de artistas mambembes e camponeses típicos e sem rumo nos é mostrado, é um olhar alegórico sobre o medo de uma guerra nuclear. Acima de tudo, o filme é um estudo sobre a relação existencial com o tempo, a vida e a morte.

Mas a intenção aqui não é elogiar o filme já consagrado.

A quarentena tem alterado a percepção humana sobre o tempo e a pandemia nos colocado diante da perda de muitas vidas. Há certa sensação de fracasso coletivo na organização do cotidiano e dos projetos da existência. Daí nasce uma relação complexa e dolorida com o tempo.

Em diversas sociedades e culturas antigas as experiências temporais ocorriam por conta dos ciclos e estações da natureza, das plantações e/ou mudanças climáticas. Também podemos observar em religiões e mitologias as relações que os seres humanos traçavam com a passagem do tempo. É evidente que as etapas de vida e morte marcavam essas ritualísticas.

Com as formas de vida em espaços urbanos que foram se acentuando num longo processo global a partir do século XVII e que, em fins do século passado, chegaram a níveis sem precedentes, as afinidades com o tempo se alteraram drasticamente.

Mesmo que ainda se ouça nalgum canto o repicar de sinos da igrejinha; que o feirante fale sobre as épocas de colheita de determinado legume; ou que crepúsculo ou amanhecer marquem a dinâmica das nossas vidas, nenhuma dessas coisas parecem atreladas ao ritmo do mundo contemporâneo das fibras óticas e dos sistemas sempre em queda. A aldeia global e conectada é marcada por outros compassos.

Muito embora os fluxos migratórios para as grandes cidades sejam recentes no Brasil – entre 1950 e 1970 notamos processos e consequências dessa urbanização – esse fenômeno, que ainda existente, é um dos traumas sociais profundos da nossa sociedade atual. Dele depreendem-se questões como desigualdade social, xenofobia, marginalização, exploração de mão-de-obra, insuficiência dos acessos amplos e de qualidade em áreas como educação, cultura, lazer, direitos humanos, saúde e alimentação.

Mas e o tempo?

Pois bem, é fato que as sociedades em processos radicais de urbanização experimentam o tempo como linearidade homogênea. Narramos nossas vidas diárias a partir de uma sucessão de eventos, quase como a escrita de um pequeno livro com 24 capítulos/horas. A linha do tempo é abstrata como as latitudes e longitudes da Terra, mas impera na sobreposição de cada minuto que vivenciamos.

O mundo do trabalho, do acúmulo financeiro e relações velozes nas grandes metrópoles proporcionam aos indivíduos noções relativas diante do tempo – dez minutos não são a mesma coisa para três moradores de rua ou para três colegas de trabalho que esperam a entrega de comida delivery; e cada vinte e três minutos gastos diante do noticiário não são sentidos da mesma forma que a morte de jovens negros de periferia.

Sim, o tempo é relativo. No Brasil; seletivo.

Foto acima: os atores Bengt Ekerot e Max von Sydow representam a Morte e um Cavaleiro Cruzado, Filme O sétimo Selo de Ingmar Bergman. Imagem retirada do site: http://ermiracultura.com.br/2018/11/12/o-jogo-da-morte/

Camaleão Albino: jundialmente conhecido como Hildon Vital de Melo. Escritor e pesquisador à deriva, mas professor de filosofia, por motivos de sobrevivência. E-mail: vitaldemelo@yahoo.com.br. Instagram: @canaleao_albino.

 

Prev Post

Cidade tem o avanço mais…

Next Post

Profissionais e empresas mais lembradas…

post-bars

Leave a Comment