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Jundiaqui

 Elas estão de volta
11 de fevereiro de 2020

Elas estão de volta

Um molusco chamado lesma dá as caras no verão e deixa essa dona de jardim atarantada

Cláudia Bergamasco

Eis que acordo uma manhã dessas e dou com uma lesma andando alegremente na porta de vidro que separa a cozinha do jardim. Gorda, pele escura, barriga branca, comprida, uns oito centímetros (sem brincadeira), deixando um rastro viscoso em seu percurso lento e constante. Gritei, claro. Quem não?

Você acaba de acordar, ainda zonza pensa naquele café preto quentinho com torradas besuntadas de queijo com geléia para matar a fome matinal e se depara com uma espécie nojenta na sua porta. Claro que levei um baita susto, para dizer o mínimo. Digo que gritei para não vexar os leitores com os palavrões que soltei.

O ser humano não tem entre suas prioridades a vida das lesmas. Gerações inteiras do bicho nascem, vivem e morrem geralmente de barriga cheia de tanto comer todo tipo de plantas sem que ninguém tome conhecimento – exceto é claro se o jardim for seu e estiver na sua casa; no caso, na minha. As pessoas só percebem a existência desses moluscos que abundam no verão quando dão as caras – na sua cara, sem qualquer pudor e como quem não quer nada.

Enfim, matei a dita cuja. Peguei o chinelo, dei uma batidinha para ela cair do vidro, a vassourei sem dó para fora dos meus domínios íntimos e lasquei um punhado de sal. Não, é claro, sem soltar um arrghhh! arrepiante e ser tomada por uma curiosidade mórbida e tenebrosa incontrolável: olhar a morte quase lenta da lesmona. Elas se contorcem e, como são constituídas basicamente de água – e outros elementos que não quero nem saber – desidratam até formar uma pequena, talvez ínfima, poça de gosma clara com um miolo escuro, que é seu corpo.

A bicha é safada. Verão a toda, chuvas idem, aproveitam para encher a pança com folhas de árvores, plantas ornamentais e até um reles vasinho com suculentas. Sem trocadilhos, essa espécie deve ser um de seus pratos prediletos.

Uns dias antes, encontrei outra lesma andando em território não permitido: no chão entre a cozinha e a sala de jantar. Esses lugares devem ter algo de especial para as lesmas que habitam minha casa, porque, sem cerimônias, elas se sentem literalmente em casa. Imagino que depois de um banquete, elas adentram minha intimidade pela fresta da porta, aquela em que em tempos imemoriais punha-se uma espécie de rodo sem cabo, feito de alumínio e borracha, justamente para impedir a entrada de espécies não humanas não convidadas a participar da rotina diária. Além do que, qualquer um dos moradores da casa poderia pisar sem querer na bicha e soltar palavrões impublicáveis tanto pelo susto quanto pelo nojo provocado. Você pode imaginar essa cena? Eu, confesso, estrebucharia com grande histrionismo e é claro, a bicha estaria a um passo da eternidade – por uma chinelada, ou, mais bacana, um punhado de sal.

O fato é que essas nojentas me enervam a vida. Elas têm uma velocidade fabulosa de se reproduzir e quanto mais você mata mais aparecem. Só para te contrariar, já que elas sabem o quanto furibunda você fica ao vê-las passeando tranquilamente pelo seu lindo e amado jardim, fartando-se de suas lindas e amadas plantas, plantadas com todo amor e carinho.

Falando francamente, lesmas não têm muita noção das coisas. Num momento de alucinação, elas saem da toca para se aventurar, à luz do dia, por caminhos onde você as vê. Isso significa que elas devem ser depressivas e ter temperamento suicida e, nesse caso, teremos que repensar nossos conceitos seculares sobre a estabilidade emocional das lesmas. Mas, não havia tempo para divagações. Era preciso agir rápido. Em alguns passos alcancei a porta e dei um xispa daqui. Nitidamente ela não gostou de ser contrariada e incomodada em seu passeio suicida matinal. Mas não teve jeito. Lasquei sal na bicha, sem nem mesmo saber se era uma mãe de família, se havia casado há pouco tempo e estava grávida, se era uma jovem obesa e forte o suficiente para escalar paredes, portas e janelas, ou se era uma anciã com pencas de netos, bisnetos e tataranetos. Ou se era da classe masculina, um lesmo.

E, que Deus me perdoe, mas farei o mesmo com todas que cruzarem meu caminho. Elas que se cuidem. Nessa época, fico muito parecida com o Iluminado, personagem imortalizado pelo fantástico Jack Nicholson no filme do mesmo nome.

Há outras formas de matar lesmas. Dizem que elas gostam de cerveja. Então, na maior inocência, você espalha potinhos da loira gelada pelos locais estratégicos do seu jardim e espera pelas atividades noturnas delas. No dia seguinte, lá estão mortinhas da silva, ou por afogamento, ou por cirrose hepática. Mas, veja bem: se você colocar a tal cerveja mineira contaminada por produtos químicos fatais, elas podem ter um barato alucinógeno e morrerem, além de bêbadas, doidinhas. Aí sim você poderá, talvez, se ver livre delas para sempre, dizimar uma geração inteira de lesmas. Ou pelo menos até o próximo verão.

Cláudia Bergamasco é escritora

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