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 Pandemia e suspensão do tempo – Parte 2
3 de agosto de 2020

Pandemia e suspensão do tempo – Parte 2

Por Hildon Vital de Melo, o Camaleão Albino

Pandemia e suspensão do tempo é uma reflexão dividida em três partes (leia a Parte 1) sobre as novas relações com a quarentena prolongada – a próxima será publicada dia 7. O texto é um estudo inicial para análises sobre educação, cultura e sociedade em nosso Brasil atual cheio de vertigens, que mais parece roteiro de distopia.

PARTE II

A dinâmica da vida urbana é marcada por experiências conflitantes. Dois alarmes que toquem às 6 horas da manhã de segunda-feira podem ter mesmo som, mas são distintos em significados para os bairros periféricos e os condomínios luxuosos. Pautar as atividades humanas é o dever não só dos despertadores, celulares, agendas e calendários, mas sim de todas as linhas, visíveis e invisíveis, que conduzem nossas vidas e as organiza.

Com essa quarentena prolongada (porém, ainda eficaz) – fenômeno que é criticado por tantos, mas respeitada por pouquíssimos – a vida urbana parece ter saído dos seus rituais, do seu cotidiano do trabalho, do engarrafamento e das correrias. O Brasil, segundo em número de pessoas infectadas e de vidas perdidas, vive a pior das quarentenas porque sequer atentou de forma séria para ela, sequer a tratou como medida de Estado e, claro, sequer a respeitou como necessidade pública ao invés de escolha individualista.

Esses mais de cem dias parecem um eterno agora, para muita gente é como se o hoje fosse todo dia, em todos os dias. Essa fratura do tempo se deu com a suspensão de muitas atividades rituais como trabalho, estudo, lazer, viagens e outras práticas. Sem boa parte desses pequenos acontecimentos a existência parece enguiçada, há quem sinta isso como um domingo preguiçoso e perpétuo que não cansa de acontecer de novo e de novo e de novo e de novo…

É uma sensação melancólica, uma espécie de exílio vivenciada de dentro. Os dias avançam, as notícias e relatos chegam até nós, mas é como se estivéssemos dentro de um momento sempre-igual. Essa reincidência prolongada do mesmo acaba por gerar uma sensação de degredo interno.

Experimentamos o distanciamento de entes queridos, dos planos cotidianos, mas o pior é esse efeito de remigração: as residências se tornaram o macrocosmo da quarentena e outra cadência para o convívio interpessoal nos foi dada.

Mas o corte mais dolorido nesse efeito de remigração não está no fato de que algumas parcelas privilegiadas da sociedade se sintam entediadas consigo mesmas nesse jorro de tempo. O trauma dentro do trauma, se assim podemos dizer, em nossa relação com a temporalidade da quarentena está no fato de que vida e morte tornaram-se apenas estatísticas num ciclo que parece infinito.

Mas, como assim? As mortes sempre existiram.

Não se trata apenas de focarmos no drama da pandemia, a questão é mais simbólica do que isso. Vida e morte são as eternas mudanças que nunca mudam, mas a forma como enxergamos essa dualidade é que tem sido sintomaticamente alterada, pois esses rituais obedecem ao contexto histórico, são construções sociais que se alteram e se transformam ao longo da existência humana.

O fato que se destaca é que o acesso a aplicativos, sites e infográficos de contágio e de números de mortes atualizados em tempo real, está anestesiando a condição da morte nas grandes sociedades urbanas.

As cenas e informações, imagens e reportagens sobre as valas comuns, de cemitérios abarrotados e notícias sobre casos de pessoas ao redor de todo o território nacional que falecem em casa parecem não sensibilizar mais. Há quem recorra ao argumento da conspiração constante para negar o agravamento de nossa crise.

É importante ressaltar duas coisas: 1) que há sim uma importância em se retratar os quadros reais da pandemia e seu poder contagioso – o bom jornalismo que notifica tais dados não o faz por mero cálculo de audiência, mas sim por princípios de cidadania e humanidade. 2) ao lidarmos com uma base de dados com diversas falhas é possível que existam sim erros e incongruências, todavia, pesquisas sérias e com teor científico consideram, no caso do Brasil, muito mais evidente o fato de subnotificações de casos e mortes do que o uso de números inflacionados que alarmem a população.

Contudo, a exposição contínua aos números de óbitos e de contaminações, parece nos fazer caminhar ainda mais no rumo de uma indiferença cega. É fato que somos o epicentro de casos dessa crise sanitária ocasionada pela COVID-19 dentre os países Latino-americanos; é fato também que os poderes federais, estaduais e municipais revelaram-se incompetentes na composição de medidas emergenciais e convergentes efetivas; e é fato que priorizar reaberturas no momento mais crítico de contaminação beira a uma prática de extermínio das populações pobres.

Foto acima: Sala dos Relógios do Complexo Fepasa, de Edu Cerioni.

Camaleão Albino: jundialmente conhecido como Hildon Vital de Melo. Escritor e pesquisador à deriva, mas professor de filosofia, por motivos de sobrevivência. E-mail: vitaldemelo@yahoo.com.br. Instagram: @canaleao_albino.

 

 

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